quinta-feira, 27 de novembro de 2008

A marca do Gatuno - 5

5: Presente dos deuses

Uma luz cegante envolveu João quando atravessou as cortinas. Ele não sabia onde estava e demorou um pouco até que a visão se adaptasse ao novo ambiente em que se encontrava. No entanto, quando seus olhos enfim clarearam, o que viu o impressionou profundamente.

Estava dentro de um enorme salão que parecia se estender por toda a eternidade. Uma escadaria gigantesca com um trono magnífico encontrava-se na frente dele. O ar carregava sussurros de criaturas misteriosas e pequenas luzes flutuavam e brilhavam pelo salão. Mas, para onde quer que olhasse, não havia um ser humano ou qualquer outro tipo de entidade visível.

“Olá?”, chamou João sem saber como proceder.

Por breves momentos, nada aconteceu. Então João foi arrancado do chão por um golpe vindo de lugar nenhum. Ele sentiu-se tonto por um instante e percebeu que seu corpo se elevava no ar. Só então entendeu o que tinha acontecido. E quase desejou não ter encontrado Bubastis após a morte.

Olhos inumanos o encaravam com frieza. João se sentiu hipnotizado. Os olhos pareciam ter o tamanho do universo, com constelações a dançarem por duas íris amarela-esverdeadas até serem consumidas em pupilas escuras como o próprio abismo entre as dimensões. Estava tão vidrado que apenas um aperto fez com que João percebesse seu corpo, preso em um punho gigantesco, coberto por pêlos e com garras pontiagudas. Só então João conseguiu gritar apavorado.

Os olhos se afastaram consideravelmente e ele pôde observar melhor seu captor. E se sentiu um pouco ludibriado quando percebeu que estava nas garras de um enorme gato. Ou gata, a julgar pelo corpo humano que se delineava abaixo da cabeça felina. Um vestido de seda cobria os seios da criatura, que usava um colar de ouro com emblema felino semelhante ao do amuleto que João roubara. As curvas eram familiares o suficiente para mostrar que estava nas mãos de uma mulher. E uma mulher muito bonita, apesar das diferenças óbvias.

“Um humano?”, perguntou a voz assombrosa da criatura, estudando-o. “O que um humano faz em minha casa, sem nenhum convite formal ou guia espiritual?”

“Por favor! Não foi idéia minha! Um gato me trouxe até aqui! O sacaninha sumiu, mas aposto que deve estar dando risada por aí! Juro por Deus!”

“Os gatos são bem vindos em meu reino”, respondeu a criatura misteriosa apertando-o. “Mas humanos não são confiáveis! Diga! Que gato é esse que o trouxe até aqui?”

“E-ele disse que se chamava Bubastis...”, respondeu João arfando para conseguir respirar.

“Bubastis...”, disse a criatura surpresa. O aperto instantaneamente se desfez e a enorme criatura colocou o humano delicadamente no chão. “Então deve haver um bom motivo para sua presença aqui. Diga-me, pequeno homem, qual o seu nome?”

“Meu nome é João dos Santos, sua majestade. Ou Jonhy, como alguns amigos costumam me chamar. E a senhora?”

“Não sabe quem sou?”, perguntou a criatura pasma.

João balançou a cabeça negativamente.

“Sorte sua que não encontrou com a minha irmã, então. Ela o faria em pedaços se lhe fizesse uma pergunta dessas. O criador me nomeou Bastet. Mas os humanos me chamam de Bast. Sou a deusa da fertilidade, do sexo e das mulheres grávidas. Como pode um ser humano como você desconhecer a minha existência? Não acredita no poder dos deuses?”

“Desculpe, senhora, mas sou apenas um cara que tenta levar a vida aos trancos e barrancos lá do lugar de onde venho. Não entendo muito desse lance de divindades ou de mitologia. Não é... da minha época, entende?”

“Claro. Achei suas roupas estranhas mesmo. Acredito, então, que você está deslocado no tempo. Mas não me parece um viajante cronal. Imagino que exista outra razão para estar aqui...”

“Eu morri...”

“Ah!”, disse a deusa felina com malícia, sentando-se em seu trono. “E imagino que não deva ter gostado muito disso, não é mesmo?”

“Nem um pouco, senhora.”

“Então, veio até mim atrás de uma... dádiva?”

“Foi o que o gato me prometeu. Uma segunda chance.”

“Graças de deuses não são dadas levianamente, meu caro João. Acho que até um ignorante como você saiba disso, não?”

João sentiu um arrepio percorrer pela espinha. Não estava disposto a oferecer a própria alma como moeda de barganha. Enquanto pensava o que responder, colocou a mão nos bolsos da jaqueta e sentiu a presença de algo que repousava ali. Ele pegou o objeto e o olhou surpreso.

“O que está fazendo, pequenino?”, questionou a deusa, curiosa.

João lhe mostrou a peça que segurava na mão. A deusa recuou, surpresa novamente.

“Acho que posso lhe oferecer isso”, respondeu João. “Imagino que foi o que me colocou nessa enrascada toda mesmo. Só depois que topei com esse amuleto que as coisas ficaram realmente esquisitas no mundo real...”

“Você!”, apontou a deusa de pé e impressionada. “Irmã!”, gritou para os enormes corredores que rodeavam a sala. “Sua presença é requisitada imediatamente!”

De repente, as luzes do salão diminuíram. Os sussurros alegres que ouvira antes agora davam lugar a o tagarelar de pequenas criaturas assustadas. João deu um passo para trás, apreensivo.

Passos que ressoavam como trovões distantes surgiram de um enorme corredor que não tinha visto antes. Olhos amarelados brilhavam na escuridão. Então, outro ser gigantesco adentrou o salão. Este também tinha corpo de mulher e a cabeça de uma leoa. Parecia extremamente perigosa e sorriu maliciosamente ao ver a pequena forma de João.

“Ora, irmã...”, disse a desconhecida com uma voz cavernosa. “Não me diga que quer dividi-lo comigo? Essa coisinha mal serve como um aperitivo...”

“Olhe atentamente”, ordenou Bastet.

A cabeça de leoa voltou-se para João, com desdém. Estava a menos de dois metros dele e o sorriso nos lábios lhe diziam que, a qualquer momento, poderia abocanhá-lo e engoli-lo sem que o humano pudesse reagir. João se encolheu levemente. Então, os olhos da leoa brilharam e ela se afastou rapidamente.

“O amuleto!”, exclamou simplesmente. “Achei que estava perdido...”

“Bubastis o trouxe até nós”, explicou Bast.

“Um humano?”

“Os tempos mudam, irmã...”, respondeu Bast olhando para João. “Mas o destino é inexorável. João dos Santos, peço que coloque o amuleto em seu pescoço agora.”

João pensou em perguntar o porquê, mas julgou melhor apenas obedecer. Sentia o perigo no ar. Provavelmente por causa da deusa com cabeça de leoa. Algo nela o deixava extremamente inquieto. Olhou para o amuleto com o rosto de gato e colocou-o no pescoço. O peso parecia correto. Nem muito pesado, nem muito leve. Quando a peça bateu em seu peito, foi como se uma conexão acabasse de ser feita. Ele olhou para as divindades. Ambas sorriram.

“Pronto”, disse Bast. “Não há mais como voltar atrás. Você será nosso novo avatar na Terra, João dos Santos. Um sopro nosso lhe devolverá à vida e o amuleto que carrega será sua ligação conosco. Apenas você poderá acessar nosso poder e esperamos que o faça com sabedoria, ou as conseqüências serão devastadoras. Está preparado para retornar?”

“Espere um minuto...”, pronunciou João, ignorando por um minuto o medo que percorria seu corpo. “É só isso? Eu coloco um colar e fica tudo numa boa?”

Bast olhou para a irmã, com ares de preocupação. Mas a divindade com cabeça de leoa caiu na gargalhada.

“Sinto que isso será divertido, irmã. Ele realmente não faz idéia do poder que carrega nas mãos...”

“Não tem graça, Sekhmet. Ele veio até nós por um motivo. Até você, irmã, deve perceber isso...”

“Não até ele cair nas minhas graças”, respondeu a divindade, desafiadora. “Por enquanto, irmã, deixarei-o aos seus cuidados. Me chame se precisar de alguma coisa...”

A divindade com cabeça de leoa deixou o salão, que voltou a ficar mais iluminado quase imediatamente.

“O que ela quis dizer com isso?”, perguntou João para Bast.

“Não dê bola para Sekhmet. Ela é a deusa das guerras e das doenças. Gosta de colocar a dúvida, ou germes do medo, como ela diria, na cabeça das pessoas. Mas é importante que você entenda, João dos Santos, o poder do objeto que carrega. Ele foi um presente do nosso senhor, Rá, para a Mãe-Terra. Somente espíritos dignos podem carregá-los e se tornar verdadeiros avatares da Justiça celestial. É um fardo deveras pesado. Mas ainda existe a chance de você deixá-lo para trás e seguir sua jornada, se assim o desejar.”

“Só que eu estaria morto para sempre e meu espírito perdido no mundo imaterial, não é mesmo? Não, minha senhora. Não é isso o que quero. Se tenho que me tornar o avatar de deuses para retornar ao meu mundo, então é isso que farei. Seja quais forem as conseqüências.”

A deusa sorriu com compaixão.

“Então, volte, pequeno gatuno...”, disse a divindade assoprando em sua direção. “Volte para seu corpo e esteja preparado para a transformação!”

E o sopro fez com que o corpo de João se desfizesse como um castelo de areia no meio de um redemoinho. Seu espírito deixou o mundo dos deuses e caiu em direção ao mundo dos homens, onde eventos além da compreensão humana começavam a se desencadear em uma progressão preocupante.

A seguir: João conseguiu a segunda chance que queria! Mas a que preço? Descubra no próximo capítulo, onde enfim ocorrerá o nascimento do Gatuno! Em uma semana!

8 comentários:

Anônimo disse...

Ta ficando interessante.....continue.....

manumaluca disse...

Pô, tem que ser mesmo uma semana? Posta antes!

Pablo Amaral Rebello disse...

Para que não faltem histórias no blog e para que não ocorram atrasos muito longos entre uma parte e outra, prefiro manter as postagens semanais. Agradeço a compreensão.

manumaluca disse...

Sim sim, claro. Você é jornalista?

Pablo Amaral Rebello disse...

Sou. E com contas a pagar! Coisa na qual o blog, infelizmente, não me ajuda! Rs.

manumaluca disse...

Entendo entendo. Muito mal remunerada essa profissão. Um dia, que sabe, isso muda. Eu não te ajudo finaceiramente, mas pelo menos leio seus textos!

Pablo Amaral Rebello disse...

E eu não podia pedir por leitores melhores!!!:) Espero que goste do desenrolar da história!!

Anônimo disse...

Com um escritor tão carismático, como não se manter fiel aos textos?!?!
=)