quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

A marca do Gatuno - 6

6: Gatuno vive!

O vento soprou sobre o corpo imóvel de João dos Santos. Apenas a grama e as folhas de árvores se moviam no jardim do casarão na rua Barões do Cerrado. A noite era dominada pelo silêncio quando, sem nenhum aviso, o morto gritou.

João levantou-se como se tivesse acabado de levar um choque. Seu peito ardia e ele assistiu atônito enquanto três projéteis de chumbos eram expelidos de seu corpo e os buracos se fechavam como num passe de mágica. Levou aproximadamente um minuto para que ele se convencesse de que tinha acabado de ressuscitar.

“Estou vivo”, sussurrou. “ESTOU VIVO!!!”, gritou. “Cara, essa vai ficar para a história. Pensei que tinha ganhado uma passagem só de ida para a terra dos pés juntos. Mas... o que isso significa?”

João lembrou-se do encontro com as divindades felinas em algum plano de consciência superior de existência. Se estava em pé e respirando, tudo aquilo ocorreu de verdade. O que significava que ele tinha um débito a pagar. Algo como se transformar num avatar dos deuses na Terra...

Ele olhou para o amuleto que ainda carregava na mão. A peça brilhou intensamente. João podia sentir o poder fervilhando na jóia. Os olhos do gato encravados na pedra esverdeada pareciam encará-lo. De repente, sentiu uma vontade irrefreável de vestir a peça.

Lentamente, prendeu o feixe de bronze do colar em que o amuleto ficava pendente e o colocou no pescoço. O brilho da jóia esvaneceu aos poucos. Ele a sentia pulsar próxima do coração. Devagar. E, então, sem pulsação alguma.

“É só isso?”, perguntou.

E, como se as palavras invocassem os poderes do além, os olhos no amuleto lançaram raios cegantes na escuridão. João gritou de desespero e medo. Uma energia entrou violentamente através do seu peito, atravessou seu coração e se distribuiu por todo o corpo como eletricidade. Ele caiu de joelhos no chão. Podia sentir a energia se mover dentro de si. E começar a transformá-lo em algo mais do que humano.

As mãos doíam. Como se os ossos nas pontas dos dedos quisessem saltar para fora. Ele olhou para elas e percebeu que também começavam a mudar de formato. E, como pode notar, as mudanças não pararam por aí. Pêlos alaranjados começaram a sair de todos os poros do corpo. Pouco depois, apareceram garras. Ele sentiu o rosto se alargar. As orelhas se moverem para o topo da cabeça e ficarem pontudas. Os dentes cresceram pontiagudos na boca. Só então se deu conta do que estava acontecendo.

Estava se transformando em um deles. Em um Deus-gato. E a dor era incomensurável.

“NÃÃÃÃÃÃOOOOOOOO!!!”, bradou aos quatros ventos.

Tarde demais. A transformação estava completa. Seu corpo não doía mais. Uma palavra flutuava em sua mente. Uma palavra dita por Bast antes de mandá-lo de volta para o mundo dos vivos.

Gatuno.

“DEUSA DOS INFERNOS!!!”, berrou. “Ela não falou sobre nada disso...”

João analisou o próprio corpo alterado por breves momentos. Então notou que o amuleto, preso ao pescoço, havia sumido. Mas ainda podia sentir seu peso. Tentou tocá-lo. A peça continuava ali. Embora presa à pele dele de alguma maneira. João se perguntou o que aconteceria se retirasse a peça, se isso o faria humano novamente. Mas não teve tempo de testar a teoria.

O barulho de algo se movendo chamou sua atenção. Só então percebeu as mudanças em sua visão noturna. O mundo parecia mais vivo. Mais cheio de luz. Ele podia enxergar sombras na escuridão como se estivesse debaixo do sol do meio-dia. Mas a primeira coisa que viu com os novos olhos que as deusas lhe deram não o deixou saborear os novos sentidos.

Uma poeira branca escapava por baixo das portas do casarão e dançava no ar noturno em espirais, que não demoraram a tomar uma forma concreta. João deu um passo para trás. A estátua do sátiro que vira anteriormente no interior da mansão tomava vida diante dos seus olhos. Demorou poucos segundo para que a estátua retomasse sua solidez pétria.

Só que, em vez de ficar parada, a estátua se moveu e encarou a criatura semi-humana que a encarava estupidamente no jardim abaixo. O sátiro já não sorria mais. Sua expressão dura de mármore mostrava apenas raiva e descontentamento com um inseto que invadiu o lar de seu mestre. E mãos gigantescas se aproximavam para esmagá-lo.

O mais puro instinto fez com que João saltasse segundos antes das mãos de pedra baterem sobre o local onde se encontrava. Ele parou de pé, em cima de uma cerca de pedra, e encarou o novo inimigo.

“Isso tudo é loucura...”, comentou para ninguém em especial.

O sátiro atacou novamente. João se desviou do golpe e pousou no antebraço da criatura. Como um relâmpago, subiu até o ombro e saltou na direção da enorme cabeça. Ele gritou e desferiu um golpe no olho da estátua. As garras arrancaram uma camada de mármore e o sátiro se afastou, como se estivesse realmente ferido. João se agarrou na lateral da casa e subiu no telhado.

Não adiantava tentar argumentar com a criatura. Ela não tinha vida. Tinha certeza disso. Seus instintos lhe diziam. Mas também não via meios de derrotar o enorme colosso. A situação não era das melhores.

O sátiro se virou e viu o pequeno homem-tigre no teto da casa. Ele grunhiu os dentes e preparou-se para uma nova investida. Mas, nesse momento, o som de sirenes distantes ecoou pelo ar. Alguém provavelmente chamou a polícia por conta do barulho dos tiros disparados por Zé Maria no que parecia ser outra vida. O sátiro parou. Olhou para direção do som. Então se virou para João, com um olhar de mais puro ódio, e começou a se desfazer novamente. Logo, uma espiral de poeira voltava para dentro da casa pelos vãos entre as portas e janelas. João estava sozinho novamente.

Ele ainda tentava digerir as impressões do breve confronto. Mas não tinha tempo. A polícia se aproximava e isso era suficiente para que também tratasse de sumir dali. Usando os músculos de sua nova forma, correu pelo telhado e saltou na escuridão. Alcançou outro prédio e continuou sua corrida desenfreada até uma posição que considerou relativamente segura. Só então parou.

Não estava cansado. Longe disso. Sentia como se pudesse fazer aquilo a noite inteira. Nunca se sentiu tão vivo. E nunca sentiu tanta raiva antes. Pois os eventos que o levaram a se transformar naquela monstruosidade ainda borbulhavam como um vulcão em sua mente.

Zé Maria, pensou com uma raiva mais afiada que uma faca. Você deve pagar pelo que me fez!

“Não faria isso se fosse você...”, disse uma voz familiar.

João se virou.

“Você?!”

Bubastis estava sentado na beirada do prédio e encarava a criatura metade humana metade felina com descaso.

“As malditas que fizeram isso comigo te mandaram para me espionar agora? É isso?”

“Se entregar ao ódio e à vingança não é o caminho de Bast”, se limitou a responder o gato.

“O que quer dizer?”

“Você é um cara esperto. Pode descobrir sozinho. Apenas lembre-se do que Bast lhe disse...”

O gato se levantou e preparava-se para partir. João saltou na frente do animal.

“Não pense que irá se livrar de mim com frases enigmáticas bichano!”, avisou João agarrando Bubastis pelo pêlo. “Quero mais informações sobre o que suas amigas fizeram comigo! E quero agora! Não pretendo passar o restante da vida como um personagem de estampas de cereais!”

“Nem precisa. Você pode voltar a ser humano quando quiser...”

“Mas como eu faço isso?”

Bubastis sorriu e piscou. Então escorregou das mãos de João, como se tivesse virado água, e desapareceu na escuridão. João procurou em volta por qualquer sinal do gato, mas não havia nada à vista. Estava sozinho novamente.

E a menos de 500 metros do local onde tinha combinado de fazer a divisão do dinheiro roubado com Zé Maria...

A seguir: João voltou dos mortos como uma criatura saída de sonhos inimagináveis, mas o homem que destruiu sua vida ainda encontra-se livre. O que acontecerá quando Gatuno encontrar seu assassino? Descubra em uma semana na conclusão de A marca do Gatuno!

4 comentários:

manumaluca disse...

Ficou ótimo! Até semana que vem!

Anônimo disse...

Que peninha, mais um capítulo e o conto se acaba. Tá muito bom, parabéns.

Unknown disse...

Bom, muito bom...

Pablo Amaral Rebello disse...

Devido a problemas técnicos no trabalho, não tive como revisar o texto da última parte da Marca do Gatuno ontem à noite. Mas prometo que, assim que possível, coloco no ar a parte que falta. Agradeço a compreensão de todos.