quinta-feira, 27 de novembro de 2008

A marca do Gatuno - 5

5: Presente dos deuses

Uma luz cegante envolveu João quando atravessou as cortinas. Ele não sabia onde estava e demorou um pouco até que a visão se adaptasse ao novo ambiente em que se encontrava. No entanto, quando seus olhos enfim clarearam, o que viu o impressionou profundamente.

Estava dentro de um enorme salão que parecia se estender por toda a eternidade. Uma escadaria gigantesca com um trono magnífico encontrava-se na frente dele. O ar carregava sussurros de criaturas misteriosas e pequenas luzes flutuavam e brilhavam pelo salão. Mas, para onde quer que olhasse, não havia um ser humano ou qualquer outro tipo de entidade visível.

“Olá?”, chamou João sem saber como proceder.

Por breves momentos, nada aconteceu. Então João foi arrancado do chão por um golpe vindo de lugar nenhum. Ele sentiu-se tonto por um instante e percebeu que seu corpo se elevava no ar. Só então entendeu o que tinha acontecido. E quase desejou não ter encontrado Bubastis após a morte.

Olhos inumanos o encaravam com frieza. João se sentiu hipnotizado. Os olhos pareciam ter o tamanho do universo, com constelações a dançarem por duas íris amarela-esverdeadas até serem consumidas em pupilas escuras como o próprio abismo entre as dimensões. Estava tão vidrado que apenas um aperto fez com que João percebesse seu corpo, preso em um punho gigantesco, coberto por pêlos e com garras pontiagudas. Só então João conseguiu gritar apavorado.

Os olhos se afastaram consideravelmente e ele pôde observar melhor seu captor. E se sentiu um pouco ludibriado quando percebeu que estava nas garras de um enorme gato. Ou gata, a julgar pelo corpo humano que se delineava abaixo da cabeça felina. Um vestido de seda cobria os seios da criatura, que usava um colar de ouro com emblema felino semelhante ao do amuleto que João roubara. As curvas eram familiares o suficiente para mostrar que estava nas mãos de uma mulher. E uma mulher muito bonita, apesar das diferenças óbvias.

“Um humano?”, perguntou a voz assombrosa da criatura, estudando-o. “O que um humano faz em minha casa, sem nenhum convite formal ou guia espiritual?”

“Por favor! Não foi idéia minha! Um gato me trouxe até aqui! O sacaninha sumiu, mas aposto que deve estar dando risada por aí! Juro por Deus!”

“Os gatos são bem vindos em meu reino”, respondeu a criatura misteriosa apertando-o. “Mas humanos não são confiáveis! Diga! Que gato é esse que o trouxe até aqui?”

“E-ele disse que se chamava Bubastis...”, respondeu João arfando para conseguir respirar.

“Bubastis...”, disse a criatura surpresa. O aperto instantaneamente se desfez e a enorme criatura colocou o humano delicadamente no chão. “Então deve haver um bom motivo para sua presença aqui. Diga-me, pequeno homem, qual o seu nome?”

“Meu nome é João dos Santos, sua majestade. Ou Jonhy, como alguns amigos costumam me chamar. E a senhora?”

“Não sabe quem sou?”, perguntou a criatura pasma.

João balançou a cabeça negativamente.

“Sorte sua que não encontrou com a minha irmã, então. Ela o faria em pedaços se lhe fizesse uma pergunta dessas. O criador me nomeou Bastet. Mas os humanos me chamam de Bast. Sou a deusa da fertilidade, do sexo e das mulheres grávidas. Como pode um ser humano como você desconhecer a minha existência? Não acredita no poder dos deuses?”

“Desculpe, senhora, mas sou apenas um cara que tenta levar a vida aos trancos e barrancos lá do lugar de onde venho. Não entendo muito desse lance de divindades ou de mitologia. Não é... da minha época, entende?”

“Claro. Achei suas roupas estranhas mesmo. Acredito, então, que você está deslocado no tempo. Mas não me parece um viajante cronal. Imagino que exista outra razão para estar aqui...”

“Eu morri...”

“Ah!”, disse a deusa felina com malícia, sentando-se em seu trono. “E imagino que não deva ter gostado muito disso, não é mesmo?”

“Nem um pouco, senhora.”

“Então, veio até mim atrás de uma... dádiva?”

“Foi o que o gato me prometeu. Uma segunda chance.”

“Graças de deuses não são dadas levianamente, meu caro João. Acho que até um ignorante como você saiba disso, não?”

João sentiu um arrepio percorrer pela espinha. Não estava disposto a oferecer a própria alma como moeda de barganha. Enquanto pensava o que responder, colocou a mão nos bolsos da jaqueta e sentiu a presença de algo que repousava ali. Ele pegou o objeto e o olhou surpreso.

“O que está fazendo, pequenino?”, questionou a deusa, curiosa.

João lhe mostrou a peça que segurava na mão. A deusa recuou, surpresa novamente.

“Acho que posso lhe oferecer isso”, respondeu João. “Imagino que foi o que me colocou nessa enrascada toda mesmo. Só depois que topei com esse amuleto que as coisas ficaram realmente esquisitas no mundo real...”

“Você!”, apontou a deusa de pé e impressionada. “Irmã!”, gritou para os enormes corredores que rodeavam a sala. “Sua presença é requisitada imediatamente!”

De repente, as luzes do salão diminuíram. Os sussurros alegres que ouvira antes agora davam lugar a o tagarelar de pequenas criaturas assustadas. João deu um passo para trás, apreensivo.

Passos que ressoavam como trovões distantes surgiram de um enorme corredor que não tinha visto antes. Olhos amarelados brilhavam na escuridão. Então, outro ser gigantesco adentrou o salão. Este também tinha corpo de mulher e a cabeça de uma leoa. Parecia extremamente perigosa e sorriu maliciosamente ao ver a pequena forma de João.

“Ora, irmã...”, disse a desconhecida com uma voz cavernosa. “Não me diga que quer dividi-lo comigo? Essa coisinha mal serve como um aperitivo...”

“Olhe atentamente”, ordenou Bastet.

A cabeça de leoa voltou-se para João, com desdém. Estava a menos de dois metros dele e o sorriso nos lábios lhe diziam que, a qualquer momento, poderia abocanhá-lo e engoli-lo sem que o humano pudesse reagir. João se encolheu levemente. Então, os olhos da leoa brilharam e ela se afastou rapidamente.

“O amuleto!”, exclamou simplesmente. “Achei que estava perdido...”

“Bubastis o trouxe até nós”, explicou Bast.

“Um humano?”

“Os tempos mudam, irmã...”, respondeu Bast olhando para João. “Mas o destino é inexorável. João dos Santos, peço que coloque o amuleto em seu pescoço agora.”

João pensou em perguntar o porquê, mas julgou melhor apenas obedecer. Sentia o perigo no ar. Provavelmente por causa da deusa com cabeça de leoa. Algo nela o deixava extremamente inquieto. Olhou para o amuleto com o rosto de gato e colocou-o no pescoço. O peso parecia correto. Nem muito pesado, nem muito leve. Quando a peça bateu em seu peito, foi como se uma conexão acabasse de ser feita. Ele olhou para as divindades. Ambas sorriram.

“Pronto”, disse Bast. “Não há mais como voltar atrás. Você será nosso novo avatar na Terra, João dos Santos. Um sopro nosso lhe devolverá à vida e o amuleto que carrega será sua ligação conosco. Apenas você poderá acessar nosso poder e esperamos que o faça com sabedoria, ou as conseqüências serão devastadoras. Está preparado para retornar?”

“Espere um minuto...”, pronunciou João, ignorando por um minuto o medo que percorria seu corpo. “É só isso? Eu coloco um colar e fica tudo numa boa?”

Bast olhou para a irmã, com ares de preocupação. Mas a divindade com cabeça de leoa caiu na gargalhada.

“Sinto que isso será divertido, irmã. Ele realmente não faz idéia do poder que carrega nas mãos...”

“Não tem graça, Sekhmet. Ele veio até nós por um motivo. Até você, irmã, deve perceber isso...”

“Não até ele cair nas minhas graças”, respondeu a divindade, desafiadora. “Por enquanto, irmã, deixarei-o aos seus cuidados. Me chame se precisar de alguma coisa...”

A divindade com cabeça de leoa deixou o salão, que voltou a ficar mais iluminado quase imediatamente.

“O que ela quis dizer com isso?”, perguntou João para Bast.

“Não dê bola para Sekhmet. Ela é a deusa das guerras e das doenças. Gosta de colocar a dúvida, ou germes do medo, como ela diria, na cabeça das pessoas. Mas é importante que você entenda, João dos Santos, o poder do objeto que carrega. Ele foi um presente do nosso senhor, Rá, para a Mãe-Terra. Somente espíritos dignos podem carregá-los e se tornar verdadeiros avatares da Justiça celestial. É um fardo deveras pesado. Mas ainda existe a chance de você deixá-lo para trás e seguir sua jornada, se assim o desejar.”

“Só que eu estaria morto para sempre e meu espírito perdido no mundo imaterial, não é mesmo? Não, minha senhora. Não é isso o que quero. Se tenho que me tornar o avatar de deuses para retornar ao meu mundo, então é isso que farei. Seja quais forem as conseqüências.”

A deusa sorriu com compaixão.

“Então, volte, pequeno gatuno...”, disse a divindade assoprando em sua direção. “Volte para seu corpo e esteja preparado para a transformação!”

E o sopro fez com que o corpo de João se desfizesse como um castelo de areia no meio de um redemoinho. Seu espírito deixou o mundo dos deuses e caiu em direção ao mundo dos homens, onde eventos além da compreensão humana começavam a se desencadear em uma progressão preocupante.

A seguir: João conseguiu a segunda chance que queria! Mas a que preço? Descubra no próximo capítulo, onde enfim ocorrerá o nascimento do Gatuno! Em uma semana!

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

A marca do Gatuno - 4

4: O reino dos mortos

Desespero. João encara o corpo sem vida em sua frente e sente como se estivesse dentro de um pesadelo. Afinal, é ele quem está caindo com três rombos no peito na grama.

Estou morto?, questiona-se. Não posso estar morto. Sou jovem demais para morrer!

“Ah, as famosas últimas palavras...”, comenta uma voz desconhecida no escuro. “Não importa quanto tempo passe, o disco nunca muda...”

“Hein?”, pergunta João se virando. Mas não há ninguém atrás dele. Ninguém além de um gato siamês que o olha com descaso. “Quem está aí? Que tipo de brincadeira é essa?”

O gato abre a boca. Por um segundo, João pensou que fosse miar. Mas o que fez em seguida deixou seus nervos à flor da pele (ou o mais próximo que um espírito desencarnado possa chegar a isso).

“Que foi? Ficou cego depois de morto?”, pergunta o gato.

O ladrão grita, assustado. “Você é um gato!”, acusa.

“E você é um espírito chato e sem graça! Sua mãe nunca te ensinou que é feio apontar para os outros?”

“O que está acontecendo?”

“Você morreu! Bem vindo ao pós-vida! Sou Bubastis!”

“João dos Santos”, responde o ladrão automaticamente olhando para o corpo morto. “Tem certeza que isso não é algum pesadelo maluco?”

“Absoluta!”

“Então... o que acontece agora?”

“Você tem uma moeda?”

“Como?”

“Uma moeda”, repete o gato.

“Não”, responde João. “Por quê?”

“Para pagar o barqueiro. Não importa, na verdade. Pelo que vejo, você tem três opções. Primeiro, pode procurar pelo túnel de luz para abandonar o plano terreno e seguir para o desconhecido, destino de todas almas humanas no final de tudo. Segundo, pode permanecer nesse plano como uma forma desencarnada, assombrando velhos casarões ou esquinas movimentadas até, eventualmente, reencarnar. Ou pode me acompanhar e tomar a porta de número três.”

O gato aponta com o focinho para o vazio e João vê uma porta de madeira no meio do jardim. O número três gravado em sua superfície.

“E o que tem por trás da porta número três?”

O gato sorri com malícia. “Você não está morrendo de curiosidade?”

“Não. Eu já estou morto.”

“Oh. É mesmo! Hehehe.”

“O que tem atrás da maldita porta?”

“Qual o seu problema? Não tem senso de humor? Humanos! Vocês levam tudo a sério demais! Quer saber o que tem atrás da porta? Pois bem, lá está a sua chance de desfazer esse pequeno episódio inconveniente e retornar ao mundo dos vivos, se isso lhe interessa. Pessoalmente, acho que o mundo está melhor sem você. Quanto menos macacos pelados melhor. Essa é minha opinião.”

“Viver novamente?”

“Você é retardado? Será que preciso ficar repetindo tudo o tempo todo?”

“Mas tem alguma pegadinha, certo? Como vender minha alma ou coisa do tipo?”

“O que eu iria fazer com uma alma fedorenta que nem a sua? Já te falei qual é o negócio, se quiser viver novamente, só tem que me acompanhar e meus chefes irão lhe explicar os termos da sua ressurreição. Se achar que é uma má idéia, sinta-se livre para escolher entre os outros dois caminhos que lhe expliquei anteriormente. Então, o que vai ser? Vem comigo ou me deixa em paz e segue seu caminho para o desconhecido?”

João reflete sobre a questão por um minuto e logo percebe que não tem como deixar passar a oportunidade.

“Tudo bem, bichano. Vamos nessa.”

“O nome é Bubastis, sabichão, e é bom que você se lembre dele se quiser voltar à vida sem uns arranhões a mais, está me entendendo?”

A porta se abre e uma luz ofuscante escapa de dentro dela. João cobre os olhos. Sente medo por um segundo. E então segue o gato pelo estranho portal, que desaparece em seguida. Para trás, fica apenas um cadáver abandonado em um jardim silencioso.

Para João, no entanto, a jornada estava apenas começando. Por um momento, foi como se o tempo e o espaço o dobrassem em diversas direções ao mesmo tempo. Em seguida, a experiência passou e ele estava em um lugar diferente.

João estava de joelhos e podia sentir seu corpo novamente. Estava em um corredor iluminado por piras elevadas que emitiam luzes com vários espectros de cor. Ele olhou ao redor e ficou impressionado com o que viu. Paredes feitas com blocos de pedra sólidos e imensos. Blocos repletos de hieróglifos, com desenhos de criaturas inumanas com partes humanas e outras partes animais. Seus dedos correram sobre os desenhos, que pareciam passar uma mensagem antiga, ou mesmo divina...

“Você vai ficar aí parado, enrolando?”, perguntou Bubastis, impaciente. “Se já se acostumou com os efeitos colaterais da passagem, sugiro que sigamos em frente. Não temos tempo a perder.”

“Onde estamos?”, questionou João, se levantando.

“Em um lugar sagrado, além do espaço e do tempo. Na casa dos antigos.”

“E o que viemos fazer aqui?”

“Você tem uma audiência com a minha senhora. Ela o aguarda além daquela passagem. Lamento, mas só posso conduzi-lo até esse ponto. Você terá que fazer o restante do caminho sozinho.”

João olhou adiante. A passagem escurecia levemente mais para frente. Véus de seda bruxuleavam no fim do corredor, como portas para outro reino misterioso.

“Quem é sua senhora?”, perguntou João se voltando para Bubastis.

No entanto, o gato não estava mais lá. Sumiu em pleno ar, como se nunca tivesse existido. João engoliu em seco e seguiu em frente, cauteloso. Uma brisa leve partia da câmara adjacente. Ele pensou escutar sussurros amigáveis e sedutores escondidos nas dobras do vento.

Por um momento, sentiu um medo profundo do desconhecido. Olhou para trás e viu a porta que o tinha levado até aquele ponto. Ainda não era tarde demais para atravessá-la e voltar ao plano terreno. Mas, se fizesse isso, estaria definitivamente morto e ficaria sem saber como sua história poderia ter tido um fim diferente. Ele engoliu em seco e seguiu em frente. A curiosidade matou o gato, pensou enquanto atravessava os véus. Só espero que não me mate também. Pelo menos, não novamente...

No corredor, em frente à porta de retorno para Terra, estava Bubastis. O pequeno gato estava sentado com o olhar fixo nos véus que João acabava de atravessar. Ele observava e sorria. O rato caiu na armadilha.

A seguir: O espírito de João prossegue sua jornada pelo reino dos mortos, onde deuses antigos o aguardam! A origem de Gatuno continua em uma semana! Não perca!

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

A marca do Gatuno - 3

3: O amuleto

A morte se aproxima a cada lufada de ar que João inspira com dificuldade. Ele sente as forças se esvaírem cada vez mais rapidamente de seu corpo. Lembra-se da alegria que sentiu momentos antes como algo perdido no tempo. Como se anos tivessem passado desde aquele momento ao invés de poucos minutos. Mesmo assim, ele se concentra nas memórias e se afasta rapidamente do agonizante presente.

Começou logo depois que ele e Zé Maria venceram o primeiro obstáculo da empreitada: um muro de dois metros e meio de altura. Zé Maria precisou da ajuda do colega para escalar a parede. Mas João subiu com técnicas de Le Parkour, usando outra parede como apoio para saltos rápidos e precisos. Dentro do terreno, os dois se esconderam atrás de um arbusto. Zé Maria estava louco para falar alguma coisa, mas João ordenou que ficasse calado com um gesto.

O plano era relativamente simples. Os dois entrariam na casa pelo jardim, longe dos olhos de vizinhos curiosos, e se separariam dentro da casa. Zé Maria ficaria responsável pela vigilância da rua, em busca de sinais de perigo. E João se encarregaria de arrombar o cofre e pegar o dinheiro. Em seguida, informaria o colega do sucesso da missão. Zé Maria buscaria o carro de fuga enquanto João se encarregava de reunir as pilhas de dinheiro dentro de uma sacola esportiva. Simples.

Os dois atravessaram o jardim e pararam ao lado de uma janela. João usou um cortador de vidro para abri-la e a dupla entrou no casarão, onde imperava o silêncio. Zé Maria estava nervoso.

“Ok”, sussurrou João. “Vamos checar o equipamento...”

“Essa estátua me dá arrepios”, comentou Zé Maria olhando para o enorme sátiro no centro do casarão. “Parece viva...”

“Esqueça o raio da estátua, Zé. Teste o walkie-talkie.”

Zé Maria pegou o aparelho e o ligou. João fez o mesmo com o seu. Ambos estavam operantes e prontos para uso.

“Tudo bem”, disse João. “Para chegar na entrada da casa, você tem que pegar aquele corredor”, apontou. “Não use a lanterna ou algum vizinho pode perceber o movimento. Teremos que trabalhar no escuro. E, lembre-se, qualquer sinal de perigo, é só me avisar pelo rádio, beleza?”

“Beleza”, concordou Zé Maria, meio incerto.

João bateu no ombro do colega, como incentivo, e saiu apressado pelas escadas do casarão. Ele subiu silenciosamente e sem esbarrar em nenhum móvel da residência. Não teve problemas para encontrar a sala do cofre, onde tinha estado um dia antes. Ali, fechou as cortinas e acendeu a lanterna. Era hora de trabalhar.

Checou o cofre novamente. Era uma peça velha e corroída pelo tempo, com claros sinais de oxidação. A trava era inteiramente mecânica, o que facilitava ainda mais o trabalho. Retirou um estetoscópio da sacola e o encostou na porta metálica enquanto buscava pela combinação certa para abrir o cofre. Não demorou mais do que cinco minutos. Então escutou o barulho da trava se abrindo e seu coração se encheu de alegria. Abriu a porta de ferro.

Pilhas de dinheiro desfilaram diante dos olhos de João. Reais, dólares, euros e moedas que ele não conseguia sequer reconhecer. Sorriu de orelha a orelha. A fortuna era muito maior do que tinham estimado. Provavelmente, a sacola esportiva que carregava não daria conta de carregar nem metade do tesouro. Mas seria o suficiente para que ele e Zé Maria nunca mais precisassem trabalhar novamente.

João agarrou o walkie-talkie que carregava na cintura.

“Zé?”, chamou.

“Na escuta. Como estão as coisas?”

“Como férias nas Bahamas, colega! A grana é nossa!”

“Ótimo! Vamos dar o fora daqui então!”

“Estou terminando as coisas por aqui e já desço. Os drinques hoje são por minha conta. Câmbio e desligo.”

João guardou o walkie-talkie. Em seguida, encheu a sacola esportiva com todo dinheiro que conseguia carregar. Menos da metade do conteúdo total do cofre. Algo em torno de R$ 3 ou R$ 4 milhões, pelos cálculos do bandido. João fechou o cofre, a sacola, estudou o ambiente para se certificar que não estava esquecendo nada e começou o caminho de volta.

Mas parou diante de um salão com objetos estranhos. Lembrou do amuleto que lhe chamou atenção um dia antes. Que mal faria levá-lo também?

Deixou a sacola no chão e abriu a porta do salão. Imediatamente, todos os sons do mundo pareceram ser sugados para uma dimensão alternativa. Um silêncio sepulcral preenchia o recinto. Armaduras medievais posicionadas na entrada e nas paredes do salão davam ao lugar um ar de mistério. João não deu atenção a nada disso. Seus olhos estavam voltados para o amuleto verdejante que parecia brilhar fracamente na escuridão. Ele avançou.

João pegou a peça com uma reverência exagerada e a contemplou na escuridão. Era perfeita. Ele podia ver formas refletidas na superfície. Viu seu próprio rosto e, de repente, outra forma mais escura atrás dele.

Se virou por puro reflexo e o que viu em seguida quase o paralisou de medo. As armaduras da sala, tomadas de vida, avançavam para cima de João no mais completo silêncio.

A mais próxima estava a ponto de abatê-lo com uma enorme espada. Por pouco conseguiu evitar o golpe, que destruiu a peça onde antes se encontrava o amuleto. Mas a surpresa fez com que perdesse o equilíbrio e caísse de costas no chão, derrubando um monte de objetos misteriosos no caminho.

Nenhum barulho, pensou o jovem. Nada dentro dessa sala faz barulho.

A armadura silenciosa não parecia abalada com nada daquilo. Ela levantou a espada novamente e João percebeu que as outras armaduras estavam cada vez mais próximas. A mente do ladrão trabalhava a mil por hora, em busca de uma rota de fuga. Não havia nenhuma.

A espada do primeiro atacante desceu novamente. Instintivamente, João pegou uma caixa de ferro caída no chão e a usou como escudo. A arma atingiu o pequeno receptáculo com violência e partiu o lacre. João escutou o impacto. O primeiro som que escutava naquele salão de loucuras. E então uma explosão de som e luz tomou conta do ambiente.

Meio cego com o brilho, João se levantou e percebeu que as armaduras chacoalhavam, pegas de surpresa pela luz inesperada e a súbita invasão de som. Agora!, pensou João com lucidez.

Ele se levantou com um pulo e empurrou a armadura que o atacava para o lado. O inimigo se desmontou com o impacto. Outra armadura levantou lentamente um machado. Mas João já tinha passado por ela. Ele correu com nunca correu antes. Derrubou mais duas armaduras no caminho antes de alcançar a segurança do corredor.

Fechou a porta do salão com um estrondo e respirou ofegante enquanto buscava uma explicação racional para o que havia acabado de acontecer. O amuleto com rosto de gato, esquecido em seu punho fechado. Foi quando percebeu que não estava sozinho. Uma forma humana se aproximava na escuridão. João prendeu a respiração.

“João?”, perguntou Zé Maria, surgindo no corredor. “Está tudo bem, cara? O que aconteceu?”

João respirou aliviado.

“Temos que sair daqui o quanto antes, cara!”, respondeu João se aproximando da sacola de dinheiro. “Você não vai acreditar nas defesas que o dono maluco desse lugar tem...”, João parou subitamente, os olhos voltados para as mãos do colega. “Pensei que tinha deixado clara minha opinião quanto ao uso de armas...”

“O quê? Isso?”, perguntou Zé Maria como se tivesse acabado de perceber que estava carregando uma pistola. “Foi mal. Não queria te assustar. Não trouxe ela para o assalto...”

“Do que está falando?”, questionou João com cautela.

Zé Maria sorriu com desdém. “Você pensou mesmo que podia fazer o que quisesse nessa cidade que ia ficar tudo numa boa, não é mesmo?”

João se afastou da porta e da sacola de dinheiro. Entendia perfeitamente o que estava acontecendo e não gostava nem um pouco.

“Espera um minuto, Zé. Somos amigos. Não tem motivo para...”

“Cale a boca!”, interrompeu Zé Maria lhe apontando a arma. “Você não sabe como tem sido trabalhar com você! Não faz a menor idéia! Depois de todas as traições...”

“Traições? Como assim, cara? A gente não se vê há anos...”

“João dos Santos, o grande conquistador!”, interrompeu Zé Maria novamente com os olhos repletos de ódio e loucura. “É óbvio que você não lembra. Por que deveria? Eram apenas mulheres para você! Não passavam de aventuras de uma noite ou duas! Mas não era assim para mim! Eu amei cada uma delas e nunca tive uma chance sequer! Você sempre chegava nelas antes de mim! Parecia uma sombra a me assombrar! Foi um pouco por conta disso que me mudei para cá, para longe de você. Então conheci Anita, uma mulher maravilhosa por quem me apaixonei. Estava tudo indo bem. A gente se gostava e tal. E aí ela veio com um papo que nunca ia dar certo entre a gente. Que tinha encontrado outro cara.”

Tudo ficou claro de repente.

“Anita? Ela veio até mim, cara! Juro por Deus! Se eu soubesse que...”

“Cale a boca! Cale a boca!”, ordenou Zé Maria novamente. Ele parecia possuído. Com cólera. Os olhos brilhavam, ameaçadores. “Não estou interessado nas suas mentiras! Essa grana vai resolver a minha vida e não vou ter que pensar nesse dia nunca mais! Nem vou ter outra garota roubada por um traíra como você!”

Lágrimas rolavam dos olhos de Zé Maria. Mas não era tristeza, João percebeu. Era raiva. Raiva pura. Ele apontou a arma para o amigo com uma determinação assustadora.

“Zé!”, gritou João sem saber o que dizer.

Mas era tarde demais. O amigo puxou o gatilho três vezes. As balas explodiram no peito de João e o lançaram para trás. Até a vidraça e, de lá, até o jardim.

A mente de João retorna ao presente. O sangue escorre pelo canto da boca. Respirar é quase impossível. A dor já parece distante, como uma memória.

Então é assim que tudo acaba, pensa o bandido. Mas ainda é tão cedo...

E os pensamentos deixam de existir. A vida se esvai com um último expirar. O corpo de João jaz inerte no jardim do casarão. A mão do bandido se abre lentamente e o amuleto com rosto de gato parece brilhar por um segundo, antes de perder sua luz por completo.

E tudo muda novamente.

A seguir: O personagem principal morreu, mas a jornada do Gatuno está prestes a começar! Esteja aqui em uma semana para testemunhar os eventos que levarão ao nascimento de uma lenda! Em uma semana!

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

A marca do Gatuno - 2

2: O plano

Rua Barões do Cerrado. Dia seguinte.

O molho de tomate escorreu do cachorro-quente para a camisa de Zé Maria, que condenou o azar com um rosto enfezado. João sorriu e devorou o que restava do cachorro-quente que tinha em mãos. Do outro lado da rua, estava uma enorme mansão de estilo vitoriano com uma loja de antiguidades construída no térreo

“O dono desse lugar é obviamente louco”, comentou João para o amigo, que ainda tentava limpar o estrago na camisa.

“Mas endinheirado pra caramba! E é isso que nos interessa!”, emendou Zé Maria.

“Tem certeza de que quer levar isso adiante?”

“Claro que sim! Já discutimos isso ontem! Só não entendo o que nos adianta vir aqui hoje...”

“Você não espera que eu vá roubar um magnata sem estudar o terreno antes, não é? Vai que ele tem algum tipo de defesa secreta que teu camarada esqueceu de mencionar ou que não conhece?”

“Bobagens. O lance é seguro. Mas, se quer realmente conferir, como pretende fazer isso?”

“Ora”, respondeu João com um leve sorriso. “Entrando pela porta da frente, é claro!”

“Espere, você não...”

Mas João não esperou o colega completar a frase. Atravessou a rua com passos rápidos e adentrou a loja de antiguidades.

Lá dentro, se deparou com um lugar repleto de todo tipo de quinquilharia. Estátuas de madeira de deuses primitivos, bolas de cristal, revistas velhas e até roupas de gente famosa enfeitavam as prateleiras. Todos objetos marcados com tarjas de preços astronômicos. Uma senhora estudava muito seriamente uma escultura que se assemalhava a um pigmeu muito excitado.
João segurou o riso e fingiu ser apenas mais um cliente enquanto estudava o ambiente. Um velhinho corcunda de longos bigodes brancos era o único funcionário da loja, que realmente não demonstrava possuir nenhum tipo de vigilância ou alarmes eletrônicos.

João aproveitou enquanto o velho conversava com alguns clientes e adentrou silenciosamente um corredor escuro, ao lado do balcão. Logo, estava dentro da mansão e ficou impressionado com o tamanho do lugar.

Um sátiro de mármore branco ocupava o salão principal, elevando-se até o terceiro andar da residência. A estátua estava disposta de tal modo que encarava quem quer que subisse pela escada espiralada com um sorriso diabólico e ameaçador. João seguiu até o último andar e logo achou o escritório do dono da casa.

Após conferir a existência do cofre e chegar à conclusão de que o trabalho era muito mais fácil que roubar doce de criança, começou a refazer os passos de volta à loja de antiquidades. Mas parou na metade do caminho, atraído por uma imagem que viu por uma porta entreaberta.

Ali, no meio de um salão repleto de objetos tão ou mais esquisitos do que os vendidos na loja, estava um medalhão esverdeado talhado no formato de uma cabeça de gato. João não conseguia entender, mas sentiu uma atração especial pelo objeto. Estava tão hipnotizado pela peça que não percebeu a aproximação de um senhor vestido como um lorde inglês.

“Quem é você? O que faz nos meus domínios?”, questionou o estranho homem.

João se virou, sobressaltado. O homem o observava com olhos maléficos e inquisidores. João sorriu com desenvoltura.

“Perdão, me perdi a procura do banheiro. Não vai acontecer novamente.”

Antes que o homem pudesse responder, João desceu as escadas. O homem o seguiu.

“Aonde pensa que vai? Volte aqui imediatamente!”, chamou ele várias vezes.

João não deu atenção e saiu pelo mesmo local por onde tinha entrado com passos apressados. Do outro lado da rua, Zé Maria o esperava agitado. “O que aconteceu? Ele te viu?”

“Não se preocupe. Não foi nada demais. Vamos embora daqui”, respondeu João apressadamente.
Ao olhar para trás, ele viu o estranho parado nas portas do estabelecimento. Os olhos fixos em João, que lhe deu as costas e partiu sem dar atenção ao estranho calafrio que percorreu sua espinha por um segundo.

Mais tarde, no apartamento de João, os dois assaltantes planejaram os últimos passos a serem dados no assalto. Apesar do encontro esquisito no casarão, João estava animado. Mas ainda com dúvidas a respeito da participação de Zé Maria.

“Tem certeza de que...”

“Quantas vezes vai me fazer a mesma pergunta?”, cortou Zé Maria irritado. “A idéia foi minha, eu te coloquei no serviço, claro que tenho certeza do que estou fazendo!”

“Mas você não precisa participar do assalto em si, se não quiser. Somos amigos, sabe que pode confiar em mim. Vou te dar a sua parte.”

“Não me faça favores. Vou te dar cobertura para ter certeza de que nada sairá errado. Estou preparado. Pode confiar.”

“Como assim?”

Zé Maria resmungou e retirou uma pistola automática que estava escondida na cintura, debaixo da camisa.

“Cobertura! Vou garantir que ninguém atrapalhe nosso serviço!”

“Você está ficando louco?”, perguntou João em um súbito acesso de fúria.

Ele arrancou a arma da mão do amigo com um golpe rápido.

“Sou ladrão, não assassino! Não trabalho com armas e nem com quem esteja disposto a usá-las! Se quiser levar esse projeto adiante é bom colocar isso dentro da tua cabeça vazia, entendeu?”

Zé Maria fez uma cara de poucos amigos, mas assentiu. “Tudo bem”, respondeu. “Mas ainda vou acompanhá-lo no assalto...”

“Faça o que achar melhor!”, rebateu João sem paciência.

Ele voltou-se para o mapa que tinha feito da casa, sem perceber o olhar de ressentimento do amigo ao pegar a arma de volta.

Tinha um trabalho a fazer. Os preparativos estavam prontos e o prognóstico era favorável. Ele sorriu com a perspectiva de colocar as mãos na fortuna que o aguardava no casarão desprotegido. Tudo a risco quase zero. Ele só não sabia ainda que aquela história terminaria em sangue...

A seguir: Os bandidos entram em ação! Mas as coisas não saem como o esperado e a morte espreita na escuridão! Tudo isso e muito mais no próximo capítulo da origem do Gatuno! Em uma semana!