sábado, 21 de março de 2009

O retorno da magia - 4

4: A caixa dos conhecimentos ocultos

Do alto do hotel Águia Dourada, o Colecionador observava um clarão distante, quase nos limites da cidade. Ao lado do cemitério dos pioneiros, para ser mais preciso. Algo queimava na noite. Ele sorriu e levantou o copo de Martini seco ao ar, em uma saudação silenciosa. Suas maquinações surtiram efeito. O casarão do Corvo Negro ardia em chamas. Ele tomou a bebida, satisfeito.

Era hora de comemorações. Ele retornou ao quarto e colocou a Cavalgada das Valkírias, de Richard Wagner, para tocar no som estéreo que o hotel lhe oferecia. De repente, ouviu um som vindo da varanda.

Uma fera estava ali, acocorada em cima do muro e preparada para atacar. O Colecionador soltou um sorriso mais largo.

“O que está fazendo aqui?”, rugiu Gatuno. “Demorei horas para encontrá-lo! Mas essa sua loção pós-barba barata te denunciou!”

“João, isso são modos de tratar seu chefe? Vim aqui para ver os frutos do seu trabalho! A casa do meu inimigo arde em chamas e tenho certeza que não teria essa visão magnífica do meu singelo lar...”

“A destruição dele não estava no contrato...”

“Ainda assim...”

“Não devia parecer tão calmo...”

“Por que não?”

“Porque vim aqui para matá-lo!”, respondeu Gatuno e saltou para cima de seu empregador.

O Colecionador não se moveu. As garras da fera miraram o pescoço do inimigo, mas, para a surpresa de Gatuno, atravessaram a carne sem derramar sangue como se cortasse o ar. Gatuno aterrissou atrás do Colecionador. Que não parecia nem um pouco impressionado com a tentativa do homem-tigre de matá-lo.

“Como?”, perguntou Gatuno.

O Colecionador suspirou. “Vejo que escolheu o caminho de Sekhmet depois de tudo...”

O nome da deusa egípcia pegou Gatuno de surpresa. A raiva e ódio se esvaíram para dar lugar à razão. E a razão deu lugar aos pensamentos mais humanos de João dos Santos.

“Você sabe? Como?”

“É óbvio! Bast é muito mais bondosa e compreensiva. E tudo que vejo em você é uma vontade de se impor e destruir possíveis ameaças! O caminho da guerra. De Sekhmet. Não me entenda mal. Acho que essa face lhe cai bem. Se ajusta melhor ao jovem destemido que você mostrou ser.”

Lentamente, João voltou à forma humana. Ele olhava desconfiado para o Colecionador. O amuleto místico brilhava no peito nu.

“Não se preocupe com o amuleto. Eu o dou para você. É o mínimo que posso fazer pelo favor que me prestou essa noite. Além disso, não acho que conseguiria mantê-lo longe de você. Não depois de ter sido escolhido pelos deuses...”

“O que fiz por você custou a vida de um amigo!”

“Quem? O cara de múmia? Achei que ele tinha tentado matá-lo! Pelo menos, foi o que Cedric me disse...”

“Zé Maria não merecia as chamas do inferno!”

O Colecionador deu de ombros. “Ossos do ofício. Onde está o meu livro?”

O ódio ardia no peito de João. Ele sentia vontade de matar o homem diante dele. Mas, ainda assim, era sua vez de sorrir.

“Livro? Que livro?”

“Não se faça de bobo, João. O livro dos Segredos. Você ficou de roubá-lo para mim!”

“Ah, aquele livro! Sim, eu o roubei...”

“E onde está ele?”

“Longe de você! E assim irá permanecer!”

“Ora, você não está pensando em me passar a perna, está?”

“Nem passou pela minha cabeça...”

“Maldito...”

“Opa, sem ofensas, beleza? Ou você quer que eu vire tigre de novo e teste esse seu truque de gasparzinho até encontrar uma fraqueza pela qual possa te rasgar e fazer em pedaços?”

O Colecionador jogou o Martini no chão. O copo se estilhaçou, como uma ameaça não dita. O Colecionador parecia querer bater em João, que sorria.

“Você não faz idéia de com quem está falando, garoto...”

“Não? E o que você vai fazer? Mandar o seu cachorrinho atrás de mim novamente? Pode mandar! Eu não estava preparado para ele antes, mas estou agora com toda a certeza! Eu não escolhi entrar para o seu mundo de maluquices e demônios, mas agora que estou dentro dele, não vai ser um playboy que nem você que vai me fazer ficar de orelha em pé, entendeu?”

O Colecionador recuou. Sua expressão mudou. Parecia cansado.

“Eu preciso do livro, garoto”, disse com voz fraca. “Preciso do livro para desfazer o que você fez...”

“E o que foi que eu fiz além de virar um gato super nutrido?”

“Você liberou um mau antigo sobre esse mundo. Um mau que pode muito bem condenar a todos nós!”

“Está falando de Gatuno?”

“Gatuno é apenas um peão de deuses menores! Não, o roubo do amuleto não significa muita coisa! Mas você não se perguntou o que liberou o poder que agora você carrega?”

“Não sei se compreendo o que está falando...”

“Claro que não, você não tem referência...”, respondeu o Colecionador balançando a cabeça, decepcionado. “No dia em que você me roubou, você acionou as defesas místicas da minha mansão. Nada demais, na verdade. Estava mais para truques de salão do que qualquer outra coisa. E teria continuado assim se você não tivesse agarrado uma caixa antiga para se defender do golpe de um dos meus soldados...”

A mente de João retornou àquele dia fatídico. Ele lembrou da caixa da qual o Colecionador falava. Assim como se lembrava do clarão que escapou dela quando o lacre se quebrou.

“Aquela era a caixa dos conhecimentos ocultos! Uma caixa confeccionada por místicos poderosos em uma época em que o diabo em pessoa caminhava pelo mundo e ameaçava transformar toda Terra no inferno fumegante que tinha deixado para trás! Você o libertou, garoto! E eu preciso do livro para descobrir onde ele está antes que reúna poder suficiente para se transformar em uma ameaça novamente!”

“Bobagem!”, protestou João. “O diabo estava escondido na caixa? Você não tinha uma mentira melhorzinha para tentar me enganar não?”

“Pense, João, pense! Tudo que você presenciou nesses últimos dias. Todos os inimigos que enfrentou. É tão difícil acreditar no que estou falando depois de tudo que viveu na pele?”

João não respondeu de imediato. Ele pensava na caixa. No clarão que deixou as armaduras medievais que o atacavam desnorteada. E em todas as loucuras que ocorreram desde então.

“Não era só o diabo que estava preso dentro daquela caixa, era?”

O Colecionador olhou para João e balançou a cabeça.

“Não. Ela também continha boa parte da magia do mundo antigo. Que trouxe o diabo para a Terra em primeiro lugar. Os místicos de quem te falei o aprisionaram dentro da caixa para dar vida a uma magia mais poderosa e efetiva para a evolução da humanidade. Os homens a chamam de ciência.”

“E agora que a magia está solta na Terra...”

“O caos não demorará a segui-la. O que dará chances para Lúcifer mostrar as cartas que guarda na manga. E isso, garoto, é algo que nenhum de nós quer testemunhar. Eu lhe garanto.”

João não disse nada. Ficou a pensar no dilema que se apresentava. Tinha escondido o livro dos Segredos em um lugar seguro. Mas não podia confiar no Colecionador. Todos seus sentidos lhe diziam isso.

“Se eu lhe der o livro, você poderá consertar esse erro?”

O Colecionador sorriu, como um bom negociador.

“Não. Mas eu conheço as pessoas que podem.”

“E o que você fará depois de colocar o diabo de volta no inferno?”

“Perdão?”

“O que você fará depois? Vai simplesmente guardar o livro na estante? Ou vai aproveitá-lo para que você mesmo domine o resto do mundo?”

“Você não pode estar falando sério...”

O amuleto brilhou intensamente no peito de João. Uma vez mais, ele se transformava no avatar dos deuses e sua forma humana dava lugar para Gatuno.

“O livro está em um lugar seguro e assim vai continuar!”, alertou Gatuno. “Não sei se o que me disse é verdade ou mentira, mas prefiro descobrir sozinho a confiar em um crápula como você! Não cruze mais o meu caminho, Colecionador, ou juro que irá se arrepender!”

Em seguida, saltou do topo do prédio para escuridão. O Colecionador assistiu enquanto o vulto do homem-tigre manobrava agilmente pelos telhados até sumir de vista. Ele segurou a barra de proteção da varanda e a torceu com uma força sobre-humana. Depois, se recompôs. Refez seu humor e sorriu.

Pegou um copo novo e se serviu com uma nova dose de Martini.

“Eu devia saber que não seria tão fácil”, disse para o vazio. “Não importa! A sorte está lançada! Que vença o melhor!”, concluiu fazendo um brinde para a cidade de Ilumina. Uma cidade que, à luz da lua cheia, era lar de anjos e demônios. Naquele momento, mais do que nunca antes.

Fim do episódio

sexta-feira, 13 de março de 2009

O retorno da magia - 4

3: Portal para o inferno

Gatuno hesitou por um instante diante do horror do inferno. Os gritos de dor e de pânico penetraram seu cérebro como agulhas quentes. A visão das hordas demoníacas a dilacerar e devorar seres humanos lhe queimaram a vista. O cheiro putrefato dos mortos e do enxofre lhe causou náuseas profundas.

Demorou apenas um instante. Mas foi o suficiente para que um demônio tomasse proveito da situação.

Tentáculos longos e pegajosos saltaram do portal e agarraram Gatuno pela perna direita, cintura e pescoço. Em seguida, os músculos dos tentáculos apertaram e começaram a puxar. Gatuno resistiu. Largou a tocha que carregava e usou as garras com eficiência. Cortou dois tentáculos e o terceiro se retraiu, desencorajado.

Zé Maria estava encolhido em um canto. Ele chorava e não conseguia tirar os olhos do horror do outro lado da porta. Gatuno não lhe deu importância. Ele saltou para tentar fechar a porta.

Não conseguiu. Outro demônio o atacou. Um chicote de fogo o puxou pela perna esquerda e fez com que perdesse o equilíbrio. Pela primeira vez, Gatuno caiu. O chicote puxou, mas as garras do homem tigre se cravaram no assoalho de madeira. Outros demônios se aproximavam, assim como a furiosa criatura dos tentáculos. Se não pensasse em algo logo, estaria perdido para sempre.

Ele olhou para o Corvo Negro, parado no final do corredor. O mago sorria. Mas também parecia extremamente concentrado. Tão concentrado que não arriscava fazer uma bravata sequer. O suor corria pela testa do velho, que movia os lábios rapidamente e sem parar.

A compreensão veio para Gatuno. Era a magia dele que mantinha o portal para as regiões malditas abertas. Tudo que precisava fazer para se livrar dos demônios era quebrar a concentração do mago.

Infelizmente, não estava em condições de fazer nada contra o Corvo Negro. O chicote de um demônio o prendia. Gatuno usou as garras do pé direito para cortar o laço de fogo. A dor corria por suas pernas, mas, mesmo assim, conseguiu saltar para dentro da casa novamente.

Ele se preparou para saltar. Iria atacar o mago e acabar com o feitiço. Mas a criatura dos tentáculos voltou e o envolveu completamente. Um puxão quase levou Gatuno para o outro lado. O homem-tigre usava todas as forças para permanecer na dimensão terrestre. Ele segurava no batente da porta em ambos os lados.

Mas já podia ouvir o som de tambores de pele humana ecoar no inferno assim como os risos dos demônios, a incentivarem a criatura de tentáculos a concluir o ataque. A monstruosidade puxou novamente. O batente da porta rangeu. Gatuno era forte o suficiente para agüentar a força demoníaca. Mas o mesmo não podia ser dito da infra-estrutura do casarão onde estava. O batente iria ceder. Era apenas uma questão de tempo.

Então, Gatuno viu a tocha caída no assoalho. O fogo a enegrecer um pequena parte do chão de madeira. E Zé Maria agachado, com as mãos sobre os olhos, assistindo a tudo pelas frestas entre os dedos.

“ZÉ MARIA!”, gritou Gatuno com todas as forças. “SEU SACO IMPRESTÁVEL DE CARNE! ACORDE E FAÇA ALGO DE ÚTIL!”

Zé Maria levantou a cabeça, como se tivesse acabado de sair de um transe. Os tentáculos da criatura puxaram uma vez mais. O batente do lado direito cedeu e Gatuno ficou seguro na terra apenas pelo braço esquerdo. Os demônios gritaram em comemoração. Faltava pouco.

“O MAGO!”, lembrou Gatuno conseguindo cravar as garras no assoalho do casarão, com um novo e pouco confiável apoio na dimensão terrestre. “ACABE COM ELE ANTES QUE ESSES DEMÔNIOS NOS LEVEM!”

Zé Maria olhou para o Corvo Negro, que o encarava desafiadoramente em silêncio. Ele balançou a cabeça negativamente.

“Eu não posso... poderoso demais...”, tentou explicar.

“A TOCHA, SEU VERME! A TOCHA!”

Zé Maria olhou para o objeto caído no chão como se nunca tivesse visto nada igual antes. Ele a pegou e olhou de volta para Gatuno, que soltou um rugido de frustração. A criatura puxou novamente e o assoalho cedeu. Mais gritos de comemoração demoníaca.

Furioso, Gatuno se virou e, com a mão direita, cortou dois tentáculos enquanto mordeu um terceiro. A criatura uivou e seu abraço mortal enfraqueceu por um instante. Gatuno aproveitou para entrar um pouco mais no velho casarão. Só que a criatura continuou a segurá-lo pelas pernas. O aperto estava ainda mais forte e ela não parava de puxá-lo.

“JOGUE A TOCHA NO VELHO! DEIXE-O QUEIMAR!”, orientou Gatuno.

Zé Maria finalmente entendeu. Ele se virou para o Corvo Negro, que pareceu alerta pela primeira vez desde que as portas para o inferno se abriram. Ele quase parou de recitar o encantamento do portal para conjurar outro ataque. Mas, antes que pudesse pensar em alguma coisa, a tocha estava no ar.

O objeto atravessou a escuridão e atingiu o manto velho e sujo que o bruxo usava. Em um minuto, a roupa estava totalmente em chamas e o Corvo Negro uivava de dor.

Ao mesmo tempo, os tentáculos da criatura perderam a força, ficaram menos reais. Gatuno aproveitou para se livrar do demônio de uma vez, com chutes e golpes rápidos de garras, e retornar para o mundo dos vivos.

O bruxo tinha virado um corvo de verdade novamente e voava com as asas chamuscadas para longe dos dois. O livro dos segredos tinha caído ao lado do manto em chamas.

Gatuno respirou, aliviado. Tinha algumas queimaduras, o pêlo estava um pouco chamuscado e alguns músculos doíam. Mas estava vivo e tinha ganhado a batalha. Ele colocou a mão nos ombros do homem com cara de múmia.

“Bom trabalho”, disse.

Zé Maria sorriu. E então tudo virou de cabeça para baixo novamente.

Tentáculos furiosos e quase invisíveis bateram em Gatuno e o lançaram longe. O portal para o inferno ainda não estava totalmente fechado. Outros tentáculos agarraram Zé Maria.

“NÃO!”, gritou Gatuno.

Os tentáculos puxaram Zé Maria que, sem as forças e as garras de Gatuno, não ofereceu menor resistência ao ataque. Gatuno saltou na direção do colega, que tinha as mãos esticadas em busca da salvação e uma súplica silenciosa nos olhos. Novamente, era tarde demais. O portal se fechou após a passagem do homem com cara de múmia e tudo que Gatuno conseguiu foi aterrissar de cara em um quarto vazio e escuro. Os demônios tinham levado Zé Maria para o inferno.

A seguir: Gatuno venceu a luta contra o Corvo Negro, mas não sem pagar um preço alto pela vitória! Ele conquistou o livro dos segredos e tem negócios a acertar com o homem que o forçou a roubá-lo! Mas que chances têm o Colecionador agora que Gatuno encontrou seu verdadeiro caminho? Confira em uma semana!

sexta-feira, 6 de março de 2009

O retorno da magia - 2

2: Armadilha

O Corvo Negro respirava com dificuldades. Tinha voltado à forma humana após se afastar do inferno que o calabouço virou. Estava cansado e enfraquecido devido ao gasto excessivo de poderes para transformação em pássaro e para animar os esqueletos. Ainda assim, escutava os sons de batalha abaixo.

Os soldados desmortos não passavam de um incômodo para a criatura felina que entrou em seus domínios. Precisava de algo mais para detê-la. E o velho poder tocava seu peito novamente. Só não tinha poder suficiente para enfrentar inimigo tão feroz. Restava apenas uma opção para vencer a batalha. Uma opção profana e arriscada que resultaria em mais um gasto monumental de poder.

O velho grunhiu e pegou um frasco com um líquido rubro que carregava amarrado ao pescoço, como um colar. Era hora de invocar alguns demônios.

Nisso, a fumaça fez com que Zé Maria tossisse, despertando de um breve período de inconsciência. Sentia vontade de vomitar e estava com náuseas. Por um instante, pensou que iria morrer e teve medo. Então abriu os olhos e desejou a morte com cada fibra de seu ser. O fim de tudo seria melhor que aquela loucura.

O homem-tigre havia retornado. Muito mais forte, feroz e maior do que antes. E ele estava a estraçalhar esqueletos animados com presas e garras. Demorou um pouco para Zé Maria se lembrar da transformação de João e dos eventos que o levaram até ali. Mas nada disso importava. Ele continuava preso, as paredes estavam em chamas e esqueletos empunhavam armas medievais ao seu redor tentando matar uma criatura saída dos pesadelos mais medonhos.

Então, a plataforma onde Zé Maria estava tremeu. O prisioneiro olhou para cima. Um dos esqueletos de olhos vazios o encarava, com um machado em uma das mãos. Apesar de não possuir lábios, Zé Maria tinha certeza que o desmorto sorria. Ele gritou em desespero.

Gatuno parou por um segundo e olhou para o prisioneiro. Em seguida, arrancou a cabeça de um atacante e a lançou contra o esqueleto que ameaçava Zé Maria. A força do impacto despedaçou as costelas da criatura e fez com que caísse no chão, se desfazendo em centenas de pedaços.

Gatuno logo destruiu os últimos atacantes e se voltou para Zé Maria.

“J-João?”, perguntou o homem com cara de múmia.

“Gatuno!”, corrigiu a criatura. “Achei que tinha te mandado sair da cidade!”

“Por favor, não me mate!”

“Pare de chorar, verme”, ordenou Gatuno arrancando os grilhões que prendiam Zé Maria. “O fogo está aumentando e o bruxo fugiu. Temos que encontrá-lo!”

“Por quê?”

“Ele levou o livro!”

“Esqueça o livro, cara. Estamos soltos! Vamos embora desse lugar antes que algum monstro pule das trevas e consiga nos matar de uma vez!”

Gatuno agarrou Zé Maria pela gola da camisa e o aproximou de si próprio, ameaçadoramente.

“Não pense que, porque o poupei, nutro alguma simpatia por você! A verdade é que minhas garras não merecem se sujar com o seu sangue covarde! Nós vamos atrás do bruxo!”

“Tu-tudo bem! Você que manda, cara...”

Gatuno jogou Zé Maria para frente e fez sinal para que saísse do calabouço na frente. Vigas começavam a cair corroídas pelo fogo, o que significa que a ordem foi aceita sem nenhuma dificuldade. Antes de deixar o calabouço, Gatuno agarrou uma tocha.

“Para que isso?”

“O velho disse que esse é o seu lugar de poder”, respondeu Gatuno. “Quero ver que poder vai sobrar quando eu reduzir esse lugar a cinzas...”

Zé Maria se calou. Não parecia ter restado nada de João na criatura o ultrapassou e agora andava à sua frente. Diferente de antes, ele parecia mais frio e poderoso. Zé Maria se perguntou que mudanças teriam ocorrido para ele ficar daquela maneira e sentiu um calafrio. Era melhor não saber.

Os dois subiram pelas escadas até o térreo. Gatuno farejava o ar e parecia estar seguindo uma trilha invisível. Zé Maria tinha dificuldade em acompanhar os movimentos rápidos do colega. A dupla se embranhou por um corredor escuro até que Gatuno fez sinal para que parassem.

“O que foi?”, sussurrou Zé Maria.

“Ele está lá”, apontou Gatuno e ficou quieto.

Não dava para ver nada adiante. A escuridão era absoluta. Mas, pelo que Zé Maria podia compreender, o bruxo tinha sido encurralado e aguardava um ataque. Certamente enfraquecido. Não havia sinais de demônios ou fantasmas de fumaça. Ainda assim, uma sensação pairava no ar. Uma tensão elétrica.

“BRUXO!”, gritou Gatuno. “ACABOU O JOGO! ME ENTREGUE O LIVRO E TALVEZ VOCÊ SAIA DAQUI COM VIDA! NÃO TESTE MINHA PACIÊNCIA!”

Silêncio. Então um riso baixo e irônico se levantou da escuridão. Uma pequena luz apareceu e, na frente dela, estava o Corvo Negro, com as costas curvadas e apoiado em uma bengala rústica. O livro de segredos abraçado em um dos braços finos. Parecia fraco e vencido. Ainda assim, seu olhar escondia algo. Um último triunfo.

Gatuno se colocou em posição de ataque. Os pêlos das costas eriçaram. O velho não disse nada. Simplesmente largou a bengala, moveu o braço e fez um gesto veloz com os dedos magros. Um vento passou pelos dois e uma porta se abriu ao lado deles.

“Mas o quê?”, perguntou Zé Maria antes de se calar de terror.

Da porta aberta, ele teve uma visão do inferno. Areias vermelhas com chamas a queimarem no horizonte, repleto de homens, mulheres e crianças crucificadas. Demônios imensos se moviam pela planície, pisando em cabeças de humanos enterrados pelo chão. Os gritos eram excruciantes. Então, um dos demônios viu o portal. E uma parte do inferno decidiu que Gatuno e Zé Maria deviam lhe fazer companhia.

A seguir: Para vencer o Corvo Negro, Gatuno precisará enfrentar as forças do próprio inferno! Conseguirá o bandido roubar o livro dos Segredos? Melhor: Conseguirá ele escapar da casa do bruxo com a própria vida? Confira no próximo capítulo das aventuras de Gatuno em uma semana!

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

O retorno da magia - 1

1: Os truques do Corvo Negro

Há muito tempo, um bruxo mais poderoso do que ele o nomeou como Corvo Negro. Na época, não passava de um adolescente louco para conhecer os segredos da magia negra. Séculos se passaram desde então. Ele cresceu, ficou mais poderoso que seu mestre, e viu o mundo mudar diante de seus olhos.

As criaturas mágicas de outrora encontraram seu fim com o surgimento de uma nova magia mais poderosa e influente do que a delas. Uma magia que o homem nomeou de ciência, e que estendeu seus tentáculos através de todo globo. Não demorou para a razão tomar o lugar do sobrenatural. E, durante muito tempo, o Corvo Negro pensou que assistia o fim de tudo que lhe era mais precioso.

Mas ele foi um dos poucos que sobreviveu à diáspora. Seu mestre caiu. Outros seres mais poderosos que ele também. Seus poderes ficaram mais fracos, ele envelheceu, mas manteve uma antiga fagulha dos velhos tempos viva em seu peito. Uma fagulha mantida por um pacto feito séculos atrás. Após tanto tempo, ele pensou que nada mais pudesse impressioná-lo. Até o surgimento de um homem tocado e abençoado pelos deuses. Um homem chamado Gatuno que, naquele momento, se livrava dos grilhões que o prendiam e exalava selvageria.

“Hora de pagar os pecados, meu velho”, grunhiu a criatura de aspecto felino diante dele..

O Corvo Negro gritou. Não estava preparado para aquilo. A transformação o pegara de surpresa. Se ao menos tivesse um momento para conjurar um feitiço...

Gatuno avançou, garra elevada sobre a cabeça, preparada para desferir um golpe mortal. Mas parou na metade do caminho ao mesmo tempo em que o outro prisioneiro, um homem com as faces envoltas em bandagens, gritou. Gatuno olhou para o punho e viu o bracelete dourado reluzir. E viu mais. Viu uma fina corrente invisível que o unia ao outro prisioneiro.

“Algemas mágicas”, murmurou Gatuno para o ar.

Era o momento que o Corvo Negro precisava. Rápido como uma cobra, ele saiu da linha de ataque da criatura e conjurou um feitiço o mais rápido que conseguiu.

“Você não escapará de mim tão facilmente velho”, avisou Gatuno ao perceber as intenções sombrias do oponente. “Me livrar desses grilhões levará apenas um segundo...”

“Um segundo é tudo do que preciso, tolo”, respondeu o Corvo Negro.

Gatuno arrancou o bracelete com a mão livre. Zé Maria gritou de dor, como se o golpe tivesse rasgado sua própria carne, e desmaiou. O homem felino não pareceu registrar a dor do prisioneiro. Tinha a atenção totalmente voltada para uma criatura feita de gás verde fosforescente que entrou no recinto. Seu lado humano lembrou-se do encontro com a criatura misteriosa antes. O mago queria nocauteá-lo.

“Isso não vai funcionar dessa vez”, alertou Gatuno.

Mesmo assim, a criatura investiu contra ele. O gás o cercando por completo até que Gatuno desaparecesse dentro da nuvem esverdeada. O Corvo Negro assistia ao espetáculo escondido atrás de uma pedra. Fazia tempo que não via um espécime mágico tão magnífico. Apesar do medo de encontrar o fim nas mãos da criatura, se perguntou qual seria o significado de sua vinda. O que isso representava para a magia na Terra. E também torcia para que seu servo gasoso conseguisse deter o inimigo.

Mas então, a fumaça esverdeada que envolvia Gatuno começou a desaparecer. A princípio, o Corvo Negro não entendeu o que estava acontecendo. Então percebeu que a criatura estava aspirando todo o ser gasoso para dentro de si e prendendo-o nos pulmões.

Quando a tarefa estava completa, Gatuno estudou o ambiente de peito estufado em busca de algo. O mago não demorou para perceber a intenção da criatura.

“Não!”, gritou em desespero.

Mas era tarde demais. Gatuno soprou a criatura gasosa presa nos pulmões para as chamas que ardiam em um suporte de aço. O contato da fumaça verde com o fogo causou uma reação explosiva. A criatura literalmente foi feita em milhares de pedaços flamejantes que se espalharam pelo calabouço, atando fogo a tudo inflamável que tocava.

Apesar do barulho e da onda de choque provocada pela explosão, Gatuno se mantinha firme no centro do calabouço, desafiador. Ele se virou novamente para o mago.

“Isso é o melhor que tem a oferecer, velho?”

“Maldito demônio”, xingou Corvo Negro, levantando-se. “Posso estar velho, mas ainda tenho algumas cartas nas mangas!”

“Isso é o que vamos ver”, gritou Gatuno saltando para cima do inimigo.

Ele caiu sobre o Corvo Negro como um tigre faminto. Mas suas garras rasgaram apenas o tecido negro do manto que o mago usava. No último momento possível, o velho desapareceu em pleno ar e, no seu lugar, uma ave negra alçou vôo.

“Eu sabia!”, clamou o corvo pousando sobre uma viga intocada pelo fogo. “Eu sabia! A velha magia voltou! Agora que sei disso, posso sentir o poder queimar dentro de mim novamente! A fagulha se acendeu! Ainda estou fraco, mas logo voltarei à velha forma! Não sei o motivo disso, mas também não interessa! É hora de pagar pelo que me fez, criatura!”

“Palavras”, rugiu Gatuno jogando o manto rasgado do mago sobre o fogo que queimava uma mesa, alimentando-o. “Para mim você não passa de um pássaro! E você sabe o que os gatos fazem com pássaros...”

“Para isso, você tem que me pegar primeiro!”

Gatuno rugiu e saltou para cima da viga. O corvo alçou vôo e escapou das garras inimigas. Gatuno se agarrou no pedaço de madeira e se posicionou no telhado, pronto para um novo salto.

“Essa é a minha casa, bichano! O meu lugar de poder! Acha mesmo que pode me derrotar dentro desse calabouço?”

Gatuno olhou ao redor em busca do pássaro. Mas tudo que podia ver eram esqueletos pendurados. Esqueletos rapidamente envolvidos por uma estranha luz azulada. Os olhos de Gatuno dilataram-se. Os mortos se mexiam, se livravam das correntes que os seguravam e olhavam para ele com cavidades orbitais tão profundas quanto o abismo.

“Adivinhe quem irá pagar pelos pecados agora, sabichão?”

A seguir: Gatuno enfrenta um exército de zumbis enquanto o Corvo Negro prepara sua próxima investida! Zé Maria confronta a criatura que o desfigurou! E o fogo ameaça a todos consumir! Em uma semana!

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

O roubo do livro dos Segredos - 4

4: Sekhmet

Em algum lugar distante, se levantavam os gritos e o cheiro de carne queimada. Mas não onde João se encontrava. Não na mata virgem de algum reino distante além das fronteiras da realidade. Um lugar que ele conjurou com o poder da própria mente em busca de uma salvação fugidia. Ele estava na selva. E podia sentir os olhos da fera que o espreitava.

“Quem está aí?”, exigiu em tom de voz levemente desafiador.

Um riso irônico partiu da vegetação. Um riso feminino.

“Pequeno humano”, respondeu uma voz poderosa e antiga. “Você me acordou! É um erro fazer isso sem conhecer as conseqüências de tal ato! Está pronto para pagar o preço da sua audácia?”

“Suas ameaças não me assustam, criatura. Eu já morri uma vez e não temo mais a morte. Apareça de onde estiver e me confronte. Eu a desafio!”

“Bast estava certa”, respondeu a poderosa voz no meio da mata. Então, sua portadora deixou a escuridão esverdeada para se colocar diante de João em toda sua majestade. Uma mulher felina que vestia armadura leve e armas perfurantes penduradas em bainhas. Uma mulher que João havia encontrado uma única vez. “Você parece digno do poder...”

“Sekhmet!”, reconheceu João. “Onde estou? O que significa isso?”

“Você é nosso avatar na Terra, humano. Meu e de Bast. Até o momento, você nos negou e tentou nos abandonar. O que mudou?”

“Seu mundo colidiu com o meu! Desde que as encontrei, tenho sido perseguido, torturado e usado como peão de homens com poderes que desafiam minha compreensão! Não sei porque isso aconteceu, mas entendo que, se quiser algum dia levar uma vida normal novamente, terei que jogar pelas suas regras! Então, aqui estou. Eu aceito o fardo de me tornar Gatuno uma vez mais.”

A deusa sorriu. Parecia estar se divertindo com a situação. Ela não era mais a gigante com quem João se encontrou uma vez. Tinha diminuído de tamanho e agora media apenas 3,5 metros de altura. João pensou por um segundo qual seria o motivo da mudança, mas então Sekhmet falou novamente.

“Você tentou tapear minha irmã uma vez. Ela é misericordiosa. Eu não tenho tais escrúpulos. Você entende?”

João assentiu. Sabia que estava negociando com uma divindade e que a dívida seria cobrada mais cedo ou mais tarde.

“Até o momento, você tem usado os poderes que lhe concedemos em benefício próprio. Sem consciência do presente real que lhe demos. Do verdadeiro potencial do Gatuno. E, como posso ver, ainda demorará um pouco para que esse potencial se manifeste dentro de você. É preciso um período de adaptação. Ou gestação, se preferir. Você ainda é uma criança. Mas vejo que posso moldá-lo em um guerreiro perfeito, se assim o desejar.

“Peço apenas que entenda o significado do caminho que está prestes a escolher. Se optar a mim ao invés de minha irmã, seus inimigos temerão o seu nome. Todo mal que presenciar poderá ser punido de maneira apropriada. Os animais e elementos lhe darão seu apoio. E exércitos o seguirão nas batalhas vindouras”, Sekhmet fez uma pausa. Séria.

“E sangue será derramado em meu nome. Em quantidades que você não pode sequer imaginar ou terá poder para controlar. A loucura e embriaguez será o ponto final de sua jornada. Esse é o destino que prevejo para você. Sabendo de tudo isso, ainda deseja seguir o caminho que lhe ofereço?”

João hesitou, surpreso com a franqueza da divindade e assustado com os maus agouros da decisão que estava prestes a fazer. Pensou em desistir da barganha por um momento. Mas, se fizesse isso, estaria condenado a uma morte sofrida e também condenaria Zé Maria, a quem não guardava mais nenhuma simpatia e que, mesmo assim, não gostaria de deixar morrer. Não queria mortes na consciência. E mortes eram o que Sekhmet lhe prometia. Em um futuro sombrio e distante, mas ainda possível. Pensou em tudo isso e balançou a cabeça. Não tinha opções. Não de verdade.

“Eu aceito”, respondeu enfim. “Serei o avatar de vocês novamente!”

“Meu avatar, João dos Santos”, corrigiu Sekhmet com um sorriso maligno. “Meu avatar. Não se esqueça disso.”

A divindade fez um gesto com as mãos e a alma de João foi lançada no vazio entre as realidades. Ele caía de volta para o próprio corpo, como na primeira vez em que morreu, com as palavras de Sekhmet a segui-lo por todo o caminho. A voz dela e algo mais. Algo muito semelhante a uma risada histérica e malévola.

“AAAAHHHHHHH”, gritava João dos Santos nas catacumbas da mansão do Corvo Negro.

O mago ria sem parar. João tinha voltado à realidade, onde o velho lhe queimava com um ferro em brasa. Ele se perguntou se a risada que escutou quando caía não seria a dele. Mas não fazia mais diferença. A dor era algo distante. Algo quente e poderoso pulsava em seu peito. O Corvo Negro se afastou.

“Mas o que é isso?”, questionou o mago.

“Isso, velho, é a sua perdição!”, respondeu João ao sentir as forças de Gatuno tomarem seu corpo.

Os músculos novamente se expandiam, um pêlo alaranjado e vistoso brotava de sua pele, agora acompanhado de listras escuras. Garras tomavam conta das mãos. E seu rosto voltava a adquirir um aspecto animalesco. O rosto de um tigre feroz e furioso. Ele rugiu com imponência enquanto se livrava dos grilhões que restringiam seus movimentos e se pôs de pé uma vez mais. Gatuno estava de volta!

“Não pode ser”, balbuciou o Corvo Negro. “Você é uma cria dos velhos deuses! Você não devia existir! Isso só pode significar que... o selo foi quebrado! A velha magia está de volta!”

A fera que momentos antes ocupava o corpo de João dos Santos levantou o rosto na direção do mago e sorriu. Seus olhos cintilavam sob a luz do fogo.

“Hora de pagar os pecados, meu velho...”

Fim do episódio

A seguir: Gatuno confronta o Corvo Negro, que precisará recorrer a todos os truques que tem na manga para sobreviver! E ainda: Zé Maria se vê novamente diante da fera que dilacerou seu rosto! Conseguirá ele sobreviver a um segundo encontro? Descubra em uma semana na história intitulada O retorno da magia!

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

O roubo do livro dos Segredos - 3

3: Prisioneiros no calabouço do Corvo Negro

O relógio na parede do casarão do Colecionador fazia tic tac, tic tac, tic tac.

Sentado no escritório em meio à escuridão, ele observava o objeto pendurado em um suporte cinco metros à frente. O ponteiro do relógio saltou uma casa. Outro minuto passou. Ele se aproximava cada vez mais do número doze. Logo o gongo da meia-noite iria soar. O Colecionador não tinha pressa. Fixava o olhar no amuleto de Gatuno e aguardava, impassível.

Enquanto isso, João recobrava a consciência em um lugar quente, úmido e fétido. Ele percebeu que estava preso novamente. Dessa vez, no que parecia ser uma plataforma de tortura. Na frente dele estava Zé Maria, ainda desmaiado. O ambiente era iluminado por tochas e havia esqueletos e corpos terrivelmente decompostos pendurados por correntes no teto. Dezenas deles. Armas medievais também estavam penduradas nas paredes. O ar era pesado e o calor, semelhante a uma fornalha.

“Bem vindo de volta...”, pronunciou uma voz asquerosa com uma pequena risada.

João se virou na direção do som e viu um velho quase careca, com longos fios brancos e finos a lhe caírem pelos ombros, o observar por trás de olhos de vidro. O velho vestia um manto negro e tinha as costas encurvadas. Locomovia-se com ajuda de um bastão de madeira e parecia estar sempre sorrindo.

“Seu amigo também está acordado”, disse apontando para Zé Maria, que permanecia com a cabeça caída. “Ele pensa que, se eu achar que ainda está dormindo, nada de ruim vai lhe acontecer”, o velho riu da tolice. “E você, meu caro? Pensa que é seguro fingir inconsciência também?”

João cuspiu no chão em resposta. Estava cansado de acordar preso diante de alguém que se achava mais esperto do que ele.

“Ah, vejo que ainda arde uma flama no peito deste aqui”, continuou o velho se aproximando de João. “Será que pode me falar, então, o que os dois patetas faziam em meus domínios, hein?”

João não respondeu. O velho se virou de costas e pegou alguma coisa.

“Talvez quisessem dar uma olhada nisso aqui?”, perguntou mostrando o livro dos Segredos. “É um livro de muitas utilidades, eu sei. Talvez vocês quisessem descobrir onde está escondido o tesouro secreto de Hitler? Ou saber o que fazer para conquistar uma atriz famosa? O número da conta do presidente da República? Não?”

“Por mim você pode queimar esse livro e jogar as cinzas no lixo”, respondeu João. “Você nos capturou! Estamos à sua mercê! E, para te falar a verdade, não estou com paciência para ter essa conversa de novo! Se quer nos matar, faça isso de uma vez!”

“Mas onde estaria a graça nisso?”, questionou o velho, se divertindo com o nervosismo do prisioneiro. “Não se preocupe. Garanto que os dois vão morrer. Mas, antes disso, deixem esse velho bruxo se divertir um pouco, ok? Faz tempo que não recebo visitas...”

Então, como era de se esperar, Zé Maria se pronunciou mostrando que não estava nem um pouco inconsciente.

“Não! Por favor, não me mate! Sou jovem! Não tenho filhos, mas ainda posso ser pai de família! Tenho a vida toda pela frente! Me deixe viver! Por favor!”

O velho olhou para Zé Maria e de volta para João, que deu de ombros. Zé Maria continuava a suplicar pela vida.

“Ele é sensível à palavra morte...”, explicou João.

“Você, por outro lado, parece não temer o fim. Me pergunto por quê?”

João não respondeu. O velho se aproximou, o examinando de perto. Ele colocou óculos semelhantes ao usado por soldadores e pareceu enxergar alguma coisa, pois se afastou com uma expressão de surpresa.

“Você foi tocado pelos deuses, meu garoto”, disse o velho enfim. “Fazia tempos que não via alguém como você! Séculos, na verdade! Isso é muito divertido! E, curioso...”

O velho se afastou de João com uma expressão pensativa. Foi parar em algum lugar atrás da plataforma onde estava preso. Zé Maria ainda chorava e parecia ter sujado as calças.

“Você ainda não nos disse seu nome...”, convidou João.

“Não?”, perguntou o velho aparecendo subitamente na linha de visão do bandido. Ele carregava um ferro com a ponta fumegante em uma das mãos. “É, acho que estou ficando velho mesmo. Pode me chamar de Corvo Negro, garoto! Sou um bruxo à moda antiga. E sei quem mandou vocês para me roubar.”

“Sabe?”, inquiriu João curioso.

O Colecionador tinha colocado um feitiço nele e em Zé Maria para que nenhum dos dois pudesse revelar quem os tinha contratado no caso de captura.

“Claro que sim! O que o Colecionador pensa que sou? Um tolo? Quem mais teria poder para fazer algemas tão sofisticadas quanto as que vocês estão usando? Estou certo, não estou?”

“Eu não saberia dizer...”, respondeu João.

“Sim, um feitiço de silêncio também está dentro das capacidades dele. Não faz mal. Sempre soube do interesse do Colecionador pelo livro dos Segredos. O espertinho já tentou me comprar ele umas duzentas vezes, sem sucesso. Mas, o que me impressiona, é ele me mandar dois incompetentes como vocês para fazer o serviço sujo. Quer dizer, do que te serviu ser tocado pelos deuses, garoto? Será que algum deles vai me impedir de te torturar agora?”

“Faça o seu pior”, disse João, desafiador.

O velho sorriu. “Vamos ver como vai estar essa bravura dentro de alguns minutos, o que acha?”

O velho se aproximava com a ponta alaranjada da barra de ferro em brasa. João podia sentir o calor emanado da arma. Grilhões de aço prendiam suas mãos e pés. Não tinha nada que o ajudasse a sair daquela situação. O medo começava a atacar seus nervos. O velho ria como um louco enquanto aproximava cada vez mais a ponta da barra da pele do prisioneiro. Zé Maria assistia a tudo com uma expressão de horror.

Então, por um momento, João se lembrou das palavras de Bubastis em um sonho recente. Aceite a transformação, não lute contra ela. Só assim você sobreviverá o que está por vir. A mente de João trabalhava freneticamente. Ele se lembrou de lançar o amuleto no fundo do Lago Serafim apenas para encontrá-lo na cômoda do apartamento onde morava. Se perguntou se seria capaz de invocar o amuleto naquela situação. João fechou os olhos. A barra de ferro a menos de dez centímetros de sua pele.

No casarão na rua Barões do Cerrado, o Colecionador fitava a peça esverdeada presa a um suporte. O relógio na parede fazia tic tac, tic tac, tic tac. O ponteiro dos minutos andou mais uma casa. Então, um brilho pareceu emanar brevemente do amuleto, que tremeluziu no ar e desapareceu por completo. O Colecionador sorriu.

A seguir: João clama pelo seu lado mais selvagem para salvar a própria vida! Mas, ao fazê-lo, ele pode acabar se deparando com um perigo maior do que imagina! E uma deusa se manifesta novamente! Tudo isso e mais no próximo capítulo do Roubo do livro dos Segredos!

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

O roubo do livro dos Segredos - 2

2: Infiltração

Um casarão de madeira saído de um filme de terror estava localizado no morro acima do antigo cemitério de Ilumina. A construção tinha ao menos cinco andares e uma torre, onde estava a única luz visível da residência. Era noite de lua cheia, mas nuvens negras cobriam o céu e o vento soprava lamentoso por entre as lápides.

João estudou o local de cima do muro do cemitério. Se não fosse pela luz tremulante na torre, a casa pareceria completamente abandonada. Ele gostaria de mais tempo para bolar um plano consistente de roubo. Mas o Colecionador não lhe dera muitas opções. O melhor era acabar com aquilo de uma vez.

João saltou o muro e começou a andar furtivamente quando sentiu um puxão no braço. Olhou para cima do muro. Zé Maria ainda estava empoleirado ali com a mão esticada na direção de João. Os braceletes dourados que eles usavam nos pulsos ligavam os dois com uma corrente invisível e intangível. Cortesia do Colecionador.

“O que você pensa que está fazendo?”, sussurrou João nervosamente. “A gente precisa entrar no casarão antes que alguém nos veja aqui do lado de fora! Vamos!”

Zé Maria balançou a cabeça coberta de faixas negativamente.

“De jeito nenhum que eu entro numa casa mal assombrada dessas! Esse lugar todo cheira à morte!”

“Estamos do lado de um cemitério! É claro que esse lugar cheira à morte!”

“Quero ir embora...”, suplicou Zé Maria.

“Bom, você devia ter pensado nisso antes de me matar na casa daquele doido e dar início a toda essa loucura! Agora, vamos!”

João puxou a corrente invisível e Zé Maria perdeu o equilíbrio, caindo sobre um arbusto. Ele gemeu de dor e parecia estar à beira de um ataque histérico. Apesar de tudo, João sentia pena do colega porque sabia que ele não tinha a menor vocação para bandido. Não passava de uma alma confusa e perdida.

“Vamos”, incentivou João ajudando-o a se levantar. “Quanto mais rápido pegarmos aquele livro, mais rápido nos livraremos de toda essa maluquice!”

“Ainda acho que isso tudo é uma má idéia...”

“Claro que é, mas a não ser que você prefira passar o resto da vida a menos de três metros de mim, acho que não temos muita opção, não é mesmo?”

Zé Maria coçou o bracelete dourado. Os dois sabiam que não havia meios comuns para retirá-los. Estavam unidos pela magia. E só a magia poderia libertá-los novamente. E, para que isso acontecesse, tinham que levar algo chamado o livro dos Segredos de volta para o Colecionador.

“Acho que não...”, respondeu Zé Maria a contragosto. “Mas como vamos fazer isso?”

“Apenas me siga e tente não fazer nenhum barulho”, orientou João.

A dupla se colocou em movimento e atravessou rapidamente o descampado até o casarão, parando debaixo de uma janela lateral. João sinalizou para que Zé Maria fizesse silêncio e se levantou devagar. Com o canto do rosto, espiou pelos vidros escuros o interior da residência. Por um segundo, desejou ter junto de si o amuleto do Gatuno para enxergar melhor. Mas esperava não precisar dele para fazer o trabalho. O local parecia deserto.

João retirou um canivete do bolso e forçou a tranca. Conseguiu quebrá-la quase sem fazer barulho. Em seguida, abriu lentamente a janela e entrou no aposento, que cheirava a mofo. Olhou ao redor. Nenhum movimento. Sinalizou para Zé Maria para que também entrasse. Segundo as orientações do Colecionador, o livro dos Segredos estaria em uma estante no terceiro andar da casa. Tudo que precisavam era chegar até lá sem chamar atenção e sair de fininho com o objeto nas mãos.

João ficou parado até que sua visão se acostumasse com a escuridão do casarão. O serviço parecia simples o suficiente. A casa não tinha alarmes nem outras medidas de segurança visíveis. Mas bastava que um deles esbarra-se em um vaso para que tudo fosse por água abaixo. Além disso, existe sempre a possibilidade de fantasmas guardarem esse lugar, pensou João se lembrando da casa do Colecionador. Ou alguma coisa ainda mais sinistra...

João afastou os pensamentos derrotistas e se virou para Zé Maria.

“Você consegue enxergar as formas que nos cercam? Consegue caminhar sem esbarrar em nada?”

“Posso tentar”, respondeu Zé Maria.

“Você vai ter que fazer melhor do que isso se quiser sair daqui com vida!”

Zé Maria soltou um gemido assustado. João suspirou.

“Apenas me siga...”

Os dois andavam devagar e sem pressa. Demorou um pouco até que João encontrasse a escada de acesso para os andares superiores. Quando a achou, se perguntou como não deduziu que ela também era a forma de acesso para a torre. Eles subiram os degraus em espiral, iluminados pela luz da lua que atravessava pequenas janelas gradeadas.

As escadas eram um pouco mais iluminadas do que o restante da casa. Mas não havia nada tranqüilizante para se ver por ali. Apenas quadros com rostos mumificados e entediados, além de teias de aranha por todos os lados. Alguns degraus rangiam levemente sob o peso dos bandidos. Nesses momentos, João parava e olhava para cima, tenso. Só depois de perceber que nenhum alarme tinha disparado, fazia sinal para Zé Maria continuar o percurso.

A subida pareceu durar uma eternidade, embora na realidade não deva ter levado mais do que alguns minutos. A escuridão dominava o terceiro andar e, por mais que João tentasse, não conseguia enxergar mais do que uns poucos palmos à frente. Ele percebeu que as janelas ali deviam estar bloqueadas e decidiu arriscar a sorte. Riscou um fósforo, que brilhou intensamente no ar parado da casa.

“O que você está fazendo?”, perguntou Zé Maria preocupado.

“Relaxe”, respondeu João estudando o ambiente à luz fraca do fósforo. “Estamos sozinhos aqui...”

Logo, viu um candelabro e acendeu uma vela. Como tinha suposto, todas as salas no pavimento estavam fechadas por cortinas espessas. A luz fraca da vela não atrairia atenção de ninguém que observasse a casa do lado de fora da residência. Os dois caminharam em silêncio até se depararem com uma enorme estante com centenas de livros. Por meia hora, eles procuraram o volume pedido pelo Colecionador em vão. Estavam a ponto de desistir quando os olhos de João viram um livro gigantesco largado sobre uma mesa no corredor.

Uma força invisível parecia emanar do volume. João se aproximou e pegou-o nas mãos. Era pesado. Tentou abri-lo e percebeu que estava lacrado. Olhou na lateral e leu o nome da edição. Sorriu. Tinha encontrado o livro dos Segredos. Se virou para o colega.

“Zé Maria”, chamou o bandido que forçava a vista para ler o título dos livros.

Zé Maria se virou. João levantou o livro. O colega respirou aliviado e caminhou apressado para as escadas.

“Vamos então”, apressou-se Zé Maria. “Não temos tempo a perder!”

“Cuidado”, tentou alertar João.

Mas era tarde demais. Zé Maria esbarrou em uma mesa e derrubou um abajur em forma de bola, que rolou sem controle pelo chão até a escada em espiral. A peça caiu em uma cacofonia interminável até o primeiro andar do casarão. Nem João nem Zé Maria conseguiam se mexer. Se a casa tivesse alguma medida de segurança, ela com certeza tinha sido acionada após todo barulho que fizeram.

Os dois ficaram em silêncio. Não ouviram nada durante um longo tempo. Então João deu um tapa na nuca de Zé Maria.

“Seu idiota”, sussurrou nervoso. “Quer colocar tudo a perder?”

Zé Maria não teve tempo de responder. Um sibilo semelhante ao de uma cobra chegou até os dois. João se virou para o corredor. Uma criatura aparentemente feita de fumaça fosforescente em forma humana espreitava os corredores. Zé Maria gritou de medo, atraindo a atenção do ser sobrenatural.

Antes que João pudesse fazer algo para conter o colega, ele tinha partido em disparada para outra sala. Tinha esquecido completamente das algemas mágicas que usava. João a puxou e Zé Maria foi puxado para o lado, batendo o rosto em uma parede e caindo desmaiado no chão. João tentou levantar o colega, mas era tarde demais. Olhos cintilantes brilharam na escuridão e tentáculos de fumaça envolveram João. Tudo estava perdido.

A seguir: Capturados, João e Zé Maria enfrentarão um poderoso mago, ansioso por saber o motivo da invasão ao seu casarão! João precisará usar métodos pouco convencionais para escapar da morte certa! Em uma semana!

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

O roubo do livro dos Segredos - 1

1: O Colecionador

“Onde estou?”, perguntou João ao abrir os olhos após um período de inconsciência impossível de ser definido.

Olhou para os lados. Parecia estar em um telhado elevado, em alguma parte de Ilumina. Se levantou e percebeu que estava no edifício mais alto que já havia visto. A cidade abaixo parecia um formigueiro de luzes, buzinas e barulho de trânsito no ar noturno. Imediatamente, chegou à conclusão que não tinha uma torre daquele tamanho na cidade onde morava. Então, ou tinha sido levado para outro centro urbano ou estava sonhando.

“Você estragou tudo novamente”, o repreendeu uma voz familiar.

João se virou. Atrás dele estava Bubastis, observando-o com olhos furiosos e descontentes. O gato siamês se aproximou.

“Tentou se livrar do amuleto e não deu atenção aos seus instintos! Você tem sorte de ainda estar respirando, seu grande idiota!”

“Onde estou?”, repetiu João.

“Em um estado intermediário. Logo, alguém deve te levar de volta à realidade e isso tudo irá parecer um sonho distante. Por isso, preste atenção no que lhe digo: Aceite a transformação, não lute contra ela! Só assim você poderá sobreviver ao que está por vir...”

“O que está por vir? Do que está falando, Bubastis? Por acaso corro algum perigo?”

O gato não respondeu. Ele olhava para os céus.

“Hora de voltar”, anunciou.

Um balde de água fria trouxe João de volta ao mundo dos vivos. Ele quase não percebeu a transição do mundo dos sonhos para a realidade. Mas a água gelada entrou por seus pulmões e fez com que tossisse como um animal. Então percebeu as mãos amarradas por trás de uma cadeira e se deu conta que não havia saídas fáceis daquela situação.

“Bem vindo de volta, meu caro João”, disse uma voz que tinha ouvido apenas uma vez antes, alguns dias atrás.

João colocou os pensamentos em ordem. Lembrou-se da luta que travou com um lobisomem, da derrota e do amuleto que lhe foi tomado. Lembrou-se do homem com a cara enfaixada que levou os problemas até ele. Zé Maria. Ele também fora capturado. Passos lentos, porém constantes, circulavam a cadeira de João. Uma mão levantou seu rosto.

“Por um breve momento pensei que meu amigo Cedric tinha feito mais do que amaciá-lo para mim...”, continuou o homem cuja aparência lembrava um lorde inglês.

“Onde está ele?”, perguntou João sem dar atenção à aura de ameaça que exalava do dono do casarão.

O homem de sorriso maligno se afastou. Ele carregava um cetro em uma das mãos e parecia considerar o que fazer com João e com o outro homem amarrado na cadeira do lado. João se virou e viu Zé Maria. Apesar do rosto enfaixado, ele pensou ver lágrimas escorrerem do rosto do colega, que mantinha a cabeça abaixada, resignado com seu destino.

“Temo que nosso caro detetive recebeu seu pagamento e partiu”, respondeu o homem. “Mas quem somos nós para culpá-lo? Ele cumpriu com suas obrigações de maneira satisfatória...”

O dono do casarão colocou a mão esquerda em um dos bolsos e retirou algo de dentro dele. João reconheceu imediatamente a peça que balançava no ar, a poucos metros da cadeira onde estava. O amuleto do Gatuno.

“Familiar?”, perguntou o homem com ar de triunfo.

“Pode ficar com a maldita peça, se é isso o que quer! Ela não me trouxe nada além de desgraça e horror! E, se pretende me matar, faça isso de uma vez! Estou cansado demais para ficar implorando pela vida!”

“Não!”, gritou Zé Maria se manifestando pela primeira vez desde que João acordou. “Por favor! Não me mate! Sou muito novo para morrer! Tenho a vida toda pela frente! Me deixe viver!”

O dono do casarão bateu com o cetro no rosto de Zé Maria. Um jato de sangue e dois dentes mancharam o chão e as roupas do homem com o rosto enfaixado.

“Silêncio, criatura! Tenha um mínimo de dignidade!”, vociferou o dono do casarão em um acesso de raiva. Então se virou para João e se recompôs. Nada em sua expressão denunciava a animosidade de um momento atrás “Não consigo entender o que alguém como você estava fazendo com um traste desses”, continuou com a voz calma e pausada. “Mas, acho que também não é do meu interesse, não é verdade? Não preciso entendê-los para contratar os seus serviços...”

“Como é que é?”, perguntou João, sem entender nada.

“Perdão, estou me adiantando. Antes de tudo, permita que me apresente. Meu nome é Alberto Phillips Williamson. Mas você e seu amigo podem me chamar de Colecionador, visto que meu hobby nos últimos séculos tem sido recolher peças de valores simbólicos, artísticos e até mesmo mágicos, como você pode atestar com o amuleto que me tomou emprestado por um breve período de tempo. Dito isso, receio que os dois tenham me dado um certo prejuízo durante a última visita que fizeram ao meu lar...”

“Do que está falando? O lobisomem te entregou de volta o amuleto e o dinheiro! Não ficamos com um centavo sequer!”

“Sim, é verdade. Assim como também é verdade que, para conseguir o amuleto, o senhor destruiu algumas relíquias da minha coleção, danificou armaduras antiguíssimas e provocou danos a uma das minhas estátuas preferidas. Meu desejo era torturar os dois até a morte. Mas receio que sejam mão-de-obra boa demais para ser desperdiçada de maneira tão leviana...”
“Então o que quer de nós?”

O Colecionador sorriu.

“Quero que roubem um livro para mim...”

A seguir: João e Zé Maria precisam acertar suas diferenças se quiserem sobreviver ao serviço que o Colecionador lhes passou! Mas, enquanto a dupla se mantem alerta para não levar uma faca nas costas, uma ameaça sobrenatural espreita nas sombras! Confira em uma semana!

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Como cães e gatos - 5

5: Confronto

Primeiro, Gatuno se curvou e sentiu os pêlos nas costas se eriçarem diante da ameaça. A vontade que tinha era de sair dali o quanto antes, encontrar um lugar seguro e escapar da monstruosidade que se avolumava à sua frente. Isso era o que seus instintos humanos lhe diziam. Mas o lado animal insistia em permanecer onde estava, desafiador. Era esse lado que interessava a Cedric, o lobisomem, que não parava de fazer provocações e o chamar para briga.

“Perdeu a coragem, bichano?”

“Pare de me chamar dessa maneira!”, rosnou Gatuno circulando o adversário em busca de pontos fracos.

“Me faça parar!”, respondeu Cedric saltando para cima do oponente.

Gatuno escapou do ataque com facilidade. O lobisomem, por sua vez, não conseguiu parar e destruiu parte da porta de acesso ao telhado com a investida. Gatuno aproveitou a oportunidade para usar as garras e rasgar as costas do inimigo. Cedric urrou de dor e tentou contra-atacar, sem sucesso. Gatuno já estava longe dali, em cima de uma chaminé, com as garras sujas de sangue.

“Primeiro golpe”, provocou Gatuno dessa vez.

“Golpe de sorte! Não passou disso!”

“Perdendo a coragem, lobinho?”

Cedric estava se divertindo. Era mais velho e mais experiente que o inimigo. Não cairia em nenhuma armadilha construídas com palavras. Esse truque era dele e sabia aplicá-lo em todas as condições possíveis e imagináveis. Resolveu fazer o jogo de Gatuno. Fez uma cara de raiva convincente e fingiu que os ferimentos eram mais graves do que eram. Não tinham passado de arranhões, mas Cedric agia como se tivesse sido trespassado por uma espada.

“Pode sorrir agora...”, continuou Cedric. “Mas duvido que consiga fazer isso novamente!”

O lobisomem saltou outra vez. Como antes, Gatuno fugiu com um salto maior e mais veloz que o do lobo. Era fácil demais. Apesar de mais forte, o inimigo era lento. Não tinha a mesma agilidade nem o mesmo jogo de cintura. Bastava manter distância dos dentes da criatura para ficar seguro. E aproveitar as aberturas fornecidas pelos ataques desajeitados para contra-atacar.

Uma situação como a que se abria perante seus olhos. O lobisomem arrebentou um emaranhado de antenas e não viu onde o inimigo tinha parado. Os instintos de Gatuno lhe diziam para se manter onde estava. Mas o sucesso do primeiro ataque e a oportunidade de esfregar uma vitória na cara do detetive convencido falaram mais alto ao seu lado humano. Gatuno saltou para as costas da criatura, pronto para atacá-lo com as garras novamente.

No entanto, o lobisomem estava preparado dessa vez. Ele se virou rapidamente assim que sentiu o movimento do inimigo e acertou Gatuno em pleno ar com um golpe devastador. Um golpe tão forte que lançou Gatuno aos céus e fez com que batesse na lateral de outro prédio. O som de uma costela se partindo ressoou na mente de João, que não pode dar atenção à dor que lhe atacava o abdômen pois percebeu que estava em queda livre.

Instintivamente, o lado animal assumiu o controle e fez com que caísse de pé e sem maiores ferimentos na calçada. Outra porrada dessas e eu já era, pensou João analisando os ferimentos.

O som de algo pesado batendo contra o chão o trouxe de volta à realidade. O lobisomem aterrissou do outro lado da rua.

“Pronto pra outra, bichano?”

Gatuno não respondeu. Entendeu que tinha caído num truque e não gostava disso. Se quisesse vencer o adversário, teria que pensar mais rápido que ele. Mas Cedric não estava disposto a lhe dar tempo para pensar. O lobisomem arrancou um poste de luz e o usou para tentar acertar o inimigo. Gatuno conseguiu se desviar do golpe, que rachou a calçada no meio.

“Mas que diabos?”, perguntou um traficante em um beco próximo.

Ao que parecia, a luta das duas criaturas estava atraindo atenção inesperada. O traficante assustado sacou uma arma e atirou contra o lobisomem, que usou o poste para se proteger dos tiros. Em seguida, o monstro rosnou para o humano, que largou a arma e fugiu beco adentro gritando de medo.

“Onde estávamos?”, perguntou Cedric, se voltando para Gatuno.

Gatuno não lhe dava atenção. Ele viu o revólver caído no chão e pensou que talvez, apenas talvez, tivesse uma chance contra o monstro que o atacava. João não gostava de armas. Mas a situação atual não lhe dava muitas opções. Ele agarrou o revólver e apontou para o lobisomem, que parou no meio da rua, com uma expressão surpresa.

“É brincadeira?”

Gatuno puxou o gatilho. Uma bala acertou o lobisomem no ombro esquerdo e ele largou o poste de luz que carregava como um tacape. O monstro olhou para o sangue derramado e de volta para Gatuno com olhos suplicantes.

“Não...”

“Tarde demais para implorar, criatura”, respondeu Gatuno e atirou novamente.

O segundo tiro acertou o lobisomem no ombro direito. Gatuno apertou o gatilho mais três vezes. Ele acertou os joelhos e o abdômen do inimigo. Só queria incapacitar o homem-lobo. Imaginou que, se acertasse as balas em qualquer lugar que não a cabeça, os músculos desenvolvidos da criatura evitariam ferimentos mais graves. Por isso, se surpreendeu quando o lobisomem caiu de cara no chão, aparentemente sem vida.

“Cedric?”, perguntou Gatuno baixando a arma.

O lobisomem não respondeu. Ele não se mexia nem parecia respirar.

“Cedric!”, chamou Gatuno largando a arma e correndo na direção do inimigo.

Não tinha a intenção de matar. Não queria se tornar um assassino. Abominava a violência, na verdade. Gatuno se ajoelhou ao lado do corpo do monstro derrubado.

“Idiota!”, disse o lobisomem agarrando o braço de Gatuno. “Nunca leu histórias de lobisomens? Só balas de prata nos ferem!”

Outra armadilha! Tinha caído em mais uma maldita armadilha!

Gatuno rosnou e tentou se livrar do abraço mortal com chutes e arranhões. Mas o inimigo apenas ria. O lobisomem deu um tapa humilhante no rosto de Gatuno. A força fez com que a visão de João se turvasse por um segundo.

“Não devia ter me provocado, garoto”, falou o lobisomem com as presas próxima do rosto inimigo. “Teria sido mais fácil se não tivesse me provocado...”

Gatuno podia sentir o bafo asqueroso da criatura. Os olhos do lobisomem transpareciam uma selvageria animal. Não havia quase nada de humano naquele olhar, que parecia considerar se deveria devorá-lo ou não. Gatuno não esperou que o homem-lobo concluísse o pensamento. Usou as garras uma vez mais para tentar um golpe mais drástico. Atacou o pescoço do lobisomem, que afastou o rosto. Mas não o largou. Os olhos do monstro encararam Gatuno com ódio. Ele rosnou.

Em seguida, desferiu vários socos contra o homem-gato. Acertou a barriga, as costelas, os braços e o rosto. Deu vários socos no rosto. Gatuno tentava reagir, mas tinha um braço preso e faltava-lhe forças. Enfim, o lobisomem o levantou sobre a cabeça e o jogou contra uma parede. Dessa vez, Gatuno não caiu de pé, mas sim de cara no chão. E assim permaneceu, visto que a consciência tinha abandonado seu corpo.

Cedric retornou à forma humana enquanto atravessava a rua. Colocou a mão em um dos bolsos e retirou um cigarro, o acendeu e tragou profundamente. Não escutava uma sirene sequer no ar, mas era óbvio que a briguinha dos dois tinha atraído a atenção dos moradores da vizinhança. No entanto, ali era o distrito dos Afogados, um local temido até mesmo pelas autoridades locais. E quem iria acreditar na história de uma briga de monstros em plena rua. O detetive sorriu e se agachou.

Calmamente, retirou o amuleto do desmaiado Gatuno. Imediatamente, o corpo passou por uma transformação e voltou a ser João dos Santos. Cedric percebeu que os ferimentos tinham desaparecido após a mudança. Pensou no trabalho que o jovem lhe dera e no potencial que tinha. Então suspirou e se levantou novamente.

“Hora de entregá-lo aos leões, meu caro...”

Fim do episódio

A seguir: Gatuno sofreu sua primeira derrota e chegou a hora de pagar o preço por seus erros! Esteja aqui em uma semana para testemunhar o encontro de João com o misterioso Colecionador no início de uma nova aventura intitulada "O roubo do livro dos Segredos"!

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Como cães e gatos - 4

4: Fuga

“E o que acontece depois que eu te entregar o amuleto?”, perguntou João, furioso. “Você mata a gente, é isso?”

“O destino de vocês não está em minhas mãos. Tenho ordens de entregá-los vivos ao meu cliente. O que ele fará com vocês não é problema meu...”

“Você não me disse nada disso antes”, reclamou Zé Maria. “Foi esse cretino quem roubou teu cliente! Não tenho nada a ver com isso! Matem ele, mas me deixem ir embora!”

“Desculpe, cara, o acordo é os dois serem entregues de presente. E não acho que meu entregador pretenda matá-los. Não faz o estilo dele. Agora, voltem ao trabalho! Ainda tem muito dinheiro para vocês recolherem...”

João se levantou, desafiador. Cedric, que estava encostado na parede, deu um passo à frente e cerrou os punhos, em uma posição defensiva. Não falou nada. Apenas olhou para o bandido, que já estava com a cara meio inchada pelas duas vezes em que o derrubou, e sorriu. João sabia que não tinha chances contra aquele homem em uma luta justa.

“Dane-se tudo isso”, rosnou João entre os dentes e correu para o próprio quarto.

“Pare!”, gritou o detetive se colocando em seu encalço.

Cedric era rápido. Mas João deu tudo de si naquela pequena corrida. Ele não pretendia parar. Ao invés disso, saltou em um só movimento contra a janela. Vidros voaram na escuridão e alguns pedaços ficaram encravados na jaqueta de couro de João. Não deu tempo para pensar em nada. Um jorro de adrenalina percorria seu corpo. Estava em pleno ar e em queda livre.

O telhado vizinho ficava a uma distância de três metros de distância e quatro de altura. O impulso de João tinha sido suficiente para que alcançasse o outro lado sem se espatifar em uma parede. Mas nunca tinha feito nada igual antes. Ao menos, não em forma humana. Ao aterrissar do outro lado, ouviu um estalo seco e sentiu a perna esquerda ceder. Um relâmpago percorreu seus nervos e João gritou de dor. Tinha quebrado o pé.

“Essa foi uma das coisas mais estúpidas que já vi...”, comentou Cedric observando João pela janela quebrada. “Achou que ia conseguir fugir dessa maneira?”

João levantou o dedo do meio para o detetive. Cedric não deu atenção ao gesto.

“Espere um minuto. Preciso algemar seu colega imprestável antes de te pegar aí. Não tenha pressa para tentar fugir, ok?”

O detetive voltou para dentro do apartamento. João olhou em volta e viu o amuleto encostado na parede. Exatamente no lugar onde tinha caído mais cedo. Tentou se levantar e sentiu um fogo insuportável a subir pela perna machucada. Caiu novamente. Seria preciso se arrastar. Mas a que distância estaria o amuleto? Cinco, sete metros? Daria tempo de chegar até ele antes que o detetive viesse em seu encalço? Afastou da cabeça as dúvidas e começou a se arrastar.

“Ainda tentando fugir?”, perguntou o detetive de volta à janela do apartamento. “Você me diverte! Aguarde um segundo...”

João continuou a se arrastar. Estava mais perto do amuleto. Não podia desistir naquele momento. Ouviu o som de passos apressados e então um silêncio breve, que precedeu uma aterrissagem suave no telhado onde se encontrava. Muito mais suave do que o tombo do bandido. João olhou para trás. O detetive se colocava de pé, com a postura do perseguidor implacável que era. O amuleto ainda estava distante. João redobrou os esforços para alcançá-lo.

“Pode parar de se arrastar quando quiser, camarada”, comentou o detetive enquanto batia os poucos cacos de vidro que se prenderam no sobretudo durante o salto. “A brincadeira acabou. Se renda enquanto ainda lhe resta alguma dignidade, certo?”

João não respondeu. Estava a menos de um metro do amuleto. O detetive aparentemente não tinha visto a peça. Talvez nem soubesse de seus poderes. João tinha uma chance e se agarrava a ela com toda força.

“Tenho que admitir, tu tem colhões, meu caro. Pena que eles não vão te adiantar de nada agora. Lamento que tenha que ser dessa forma, amigo, de verdade. Mas sou um homem de palavra. Espero que entenda...”

As pontas dos dedos de João tocaram o amuleto. Então mãos mais fortes que a do bandido se fecharam sobre a gola da jaqueta dele e o levantaram como um boneco.

“Estou falando contigo, cara. Que foi? O gato comeu sua língua?”

“Escolha interessante de palavras”, respondeu João rindo pela primeira vez.

O detetive não entendeu. João ficava mais pesado a cada momento que passava e parecia ficar mais encorpado. Cedric o virou e ficou surpreso com o que viu. Garras brilharam sob a luz do luar e acertaram o peito do homem de sobretudo, que largou a coisa que momentos antes era apenas um bandido pé de chinelo.

João mudava sob o olhar do detetive. Pêlos alaranjados cresciam pelos braços e o rosto se alargava, adquirindo características felinas. Os olhos assumiam um aspecto selvagem e ameaçador. Gatuno caminhava sobre a face da Terra uma vez mais.

“O que foi?”, repetiu Gatuno com um sorriso malicioso. “O gato comeu sua língua?”

O detetive encarou a criatura com descrença e então sorriu enigmaticamente. Gatuno esperava que o humano corresse. Ao invés disso, Cedric retirou o sobretudo em desafio à criatura inumana.

“O que está fazendo?”, rosnou Gatuno. “Não pode estar pensando seriamente em lutar comigo, está?”

Cedric jogou a camisa que vestia sobre o sobretudo descartado. Tudo sem tirar os olhos do oponente.

“Bichano...”, provocou o detetive. “Você não faz idéia com quem se meteu dessa vez!”

Gatuno rosnou e se preparou para atacar. Mas hesitou um momento. Alguma coisa acontecia com o homem parado diante dele. Poderia ser apenas um jogo de sombras, mas a visão aguçada de Gatuno era melhor do que a dos humanos. Ele entendeu que aquilo que via não era fruto de sua imaginação.

O homem diante dele realmente aumentava de tamanho a cada segundo e pêlos negros saltavam da pele. Os músculos do detetive se dilatara na medida que a transformação ganhava velocidade. O rosto se afunilava e dentes brancos ficavam mais largos e pontudos. O nariz deu lugar a um focinho. Orelhas pontudas se levantaram na escuridão e olhos ferozes, negros como a noite, encaravam o inimigo com escárnio. O lobisomem se pôs em posição de ataque e soltou um longo uivo de satisfação.

Dessa vez foi Gatuno quem deu um passo para trás, surpreso. O lobisomem tinha duas vezes o seu tamanho.

“Ainda quer brincar?”, perguntou a voz cavernosa do homem-lobo.

A seguir: Gatuno enfrenta seu primeiro desafio de verdade! Mas terá ele chances contra um inimigo mais experiente e mais forte? Confira em uma semana!

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Como cães e gatos - 3

3: Visitantes inesperados

João estava desanimado quando entrou no bar Zona Proibida. O ambiente parecia refletir seu estado emocional. Poucos clientes, pouca conversa e uma televisão ligada no mudo. Olhou em volta e não viu nenhum rosto conhecido. Lembrou-se que era segunda-feira e suspirou.

Sentou-se no balcão.

“Uma cerveja, por favor”, pediu.

O barman virou-se, notando a presença do novo freguês pela primeira vez e impressionou-se ao ver quem era.

“João? É você mesmo? Que cara de enterro é essa, cara?”

“Não estou na minha melhor forma, Cachola”, respondeu João levantando a cabeça. “Dia parado?”

“Normal para uma segunda-feira”, respondeu o barman lhe entregando a caneca pedida. “Passou um cara mais cedo atrás de você...”

“Policial?”

“Não. Disse que era da família. Um sujeito engravatado com ar de janota.”

“Daniel”, assentiu João. “Meu primo”, explicou. “Ele não chegou a dizer o que queria comigo, chegou?”

“Não. Só pediu para avisar que está te procurando. Sabe o que pode ser?”

“Nem idéia”, respondeu João.

E não sabia mesmo. Fazia tempo que não conversava com o primo, que tinha acabado de ser contratado como advogado após concluir o curso de Direito. Daniel tinha conhecimento das atividades extracurriculares de João. Mas o recriminava menos que a tia, apesar de não apoiá-lo. Ainda assim, era um dos seus melhores amigos.

“Você não apareceu por aqui ontem. Os garotos estranharam. Sabem que não é de perder um jogo marcado”, comentou o barman mudando de assunto.

“O Círculo Marginal sentiu minha falta? Ou falta do meu dinheiro? Se passarem por aqui, diga que não pude ir porque passei o fim de semana resolvendo uns problemas...”

“Sei...”, continuou o barman. “Quer conversar sobre isso?”

“Sei lá”, respondeu João dando um gole longo de cerveja. “Acho que eu não saberia nem por onde começar, Cachola...”

“Mulher?”, insistiu o barman.

João pensou sobre a pergunta e riu pela primeira vez desde sábado.

“É, acho que posso dizer que tem mulher no meio. E mais de uma!”, respondeu João pensando em Anita, Bast e Sekhmet.

O barman quis saber da história, mas João não tinha como lhe contar a verdade. Então fez uma piada e mudou de assunto. Conversou com Cachola por mais uma hora e meia. Esperou para ver se algum velho conhecido aparecia para tomar uns tragos, só que não apareceu ninguém. João se convenceu que beber não iria ajudar em nada, pagou a conta e decidiu voltar para casa.

A noite caía sobre as ruas de Ilumina enquanto luzes artificiais tentavam afastar a escuridão. No distrito dos Afogados, as trevas predominavam mesmo durante o dia. Diversos postes tinham as lâmpadas quebradas e malandros vendiam drogas para jovens em carros esportes. Pichações se espalhavam pelas paredes e sujeitos com caras de poucos amigos, revólveres visíveis na cintura, andavam pela rua sem preocupações. Não havia um policial à vista por mais de dez quarteirões.

A vizinhança estava em um estado de deterioração desde que João se mudou para lá. Ninguém o incomodava porque todos sabiam que não passava de um ladrão pé de chinelo. Um bandido menor. João se perguntou o que seus vizinhos pensariam se soubessem da fortuna que tinha escondida no apartamento. Provavelmente lhe cortariam a garganta ou dariam um tiro na cara.

Pensamentos animadores. Você realmente está com a bola toda, meu caro, considerou João enquanto tirava as chaves do apartamento do bolso.

Estava distraído e melancólico, com a guarda baixa. Por isso não notou a dupla que se escondia nas escadas até ter acabado de destrancar a fechadura. Só então percebeu um movimento e se virou.

Tarde demais. Um murro o acertou no queixo e fez com que caísse dentro do próprio apartamento.

“Eu não me levantaria se fosse você”, avisou o homem que o acertou adentrando a residência.

João se virou. Um sujeito de sobretudo e aparência selvagem o encarava. Não parecia armado. João decidiu arriscar a sorte. Saltou sobre o inimigo. Dois socos o convenceram de que acabara de cometer um erro. O primeiro o acertou na barriga. O segundo, no rosto. E o bandido foi lançado aos ares com a força do inimigo, caindo sobre a mesa onde estava as pilhas de dinheiro roubadas no sábado. Notas de todas as cores e nacionalidades se espalharam pelo ar.

“Agora olhe a bagunça que você fez...”, reclamou o desconhecido. “Espalhou todo dinheiro do meu cliente!”

João ainda estava meio grogue por causa das pancadas que levara. Não tinha forças para tentar outro ataque. Então observou enquanto o estranho puxava outro homem, que permanecia escondido na escuridão do corredor, e o jogou ao seu lado. O sujeito gemeu levemente ao cair e, apesar das bandagens impedirem qualquer tipo de reconhecimento, o som despertou a memória do bandido.

“Zé Maria?”, perguntou João olhando perplexo para o amigo que o traiu.

O homem por trás das bandagens sorriu com pura maldade.

“Eu trouxe ele aqui...”, revelou Zé Maria com ar de triunfo.

“Vocês dois, arrumem essa bagunça”, ordenou o homem de sobretudo fechando a porta do apartamento. “E façam isso em silêncio. Não queremos chamar a atenção dos vizinhos, queremos?”

“Quem é você? O que quer de mim?”, exigiu João sem se mover.

“Meu nome é Cedric Lobato. Sou detetive particular. Isso é tudo que vocês precisam saber sobre mim, acreditem. E o que eu quero é acabar com esse serviço o quanto antes para retomar a minha vida. Para isso, é melhor vocês recolherem esse dinheiro o mais rápido possível sem gastar meu tempo com perguntas inúteis. Portanto, ao trabalho!”

“Te contrataram por conta do roubo de sábado então”, concluiu João. “É só o dinheiro que querem?”

O homem de sobretudo acendia um cigarro.

“Não...”, admitiu.

“O que mais seu cliente pediu para levar de volta para ele?”

“Você parece um cara esperto. Mais esperto do que seu colega com cara de múmia, pelo menos. Tenho certeza de que pode descobrir o que meu cliente quer sozinho...”

“O amuleto?”, perguntou João.

“O amuleto!”, respondeu o detetive.

E nossas vidas, pensou João sem esperança.

A seguir: A situação se complica e João toma medidas desesperadas! Contudo, o detetive Cedric revela ter mais cartas guardadas na manga do que se poderia imaginar!

domingo, 4 de janeiro de 2009

Como cães e gatos - 2

2: O homem sem face

“Olha, mãe, uma múmia!”, apontou um garotinho com menos de dez anos.

“Pare com isso, menino! Já te disse que é feio apontar para os outros!”, repreendeu a mãe da criança. “Desculpe, senhor”, continuou ela em uma voz sem graça para o estranho na fila do terminal de ônibus. “Crianças! Não medem as palavras...”

“Tudo bem”, resmungou o homem, de rosto e mãos enfaixadas. “Apenas afaste-o de mim, ok?”

A mulher olhou para o homem com indignação, mas ele não lhe deu mais atenção. Apenas se virou para o lado e olhou os itinerários de viagem. Precisava sair da cidade o quanto antes. Não se atrevia a ficar em Ilumina nem um segundo a mais. Não depois de tudo que aconteceu. Dos horrores que viveu.

Os ferimentos nas mãos, no rosto e no peito diziam para Zé Maria que não tinha ficado louco. Que o amigo que matou tinha voltado da terra dos pés juntos como uma criatura saída do inferno. As palavras de Gatuno ainda reverberavam em sua mente como um alerta ameaçador. Não me deixe vê-lo nas minhas ruas novamente, verme, ele havia dito. Ou não ficarei contente apenas em arranhá-lo um pouco...

Os nervos de Zé Maria estavam à flor da pele. Ele olhava sobre os ombros de minuto a minuto. Como se esperasse ver o homem com cabeça de tigre sair de um canto escuro a qualquer momento. Tudo que queria era pegar o primeiro ônibus para fora da cidade. Depois pensaria no que fazer com o restante da vida.

A mulher no balcão tinha um olhar entediado e cansado.

“Para onde?”, perguntou ela.

Zé Maria abriu a boca para responder quando uma mão caiu sobre seu ombro.

“AAAAHHHH!!!”, gritou ele esperando ser despedaçado pelo monstro de seus pesadelos.

Mas, ao invés de um homem com cara de tigre, um sujeito de aparência selvagem o segurava pelo ombro com força. Ele tinha cabelos negros e usava um sobretudo.

“Acalme-se, Jorge! Quer assustar os outros na fila?”, perguntou o estranho amigavelmente.

Zé Maria não sabia o que responder. Não conhecia o homem e não fazia idéia do que estava falando.

Um policial militar se aproximou dos dois.

“Algum problema aí?”, perguntou o oficial com a mão nervosa sobre o revólver.

“Problema nenhum, seu guarda. Meu nome é Cedric Lobato. Sou detetive particular e fui contratado para encontrar meu amigo Jorge aqui, que fugiu do manicômio na semana passada...”

“È mentira! Nunca vi esse homem na vida antes! Acredite em mim, seu guarda! Acho que esse homem quer me matar!”

A pressão no braço de Zé Maria aumentou consideravelmente. Ele gemeu de dor.

“Desculpe, seu guarda”, disse o homem de sobretudo com um sorriso amigável. “Nosso caro Jorge perde a noção da realidade quando se esquece de tomar seu remédio! Aqui!”, continuou mostrando um pote alaranjado cheio de comprimidos para o policial. “Ele só precisa tomar dois desses para ficar calmo com uma ovelha...”

“Agora, espere um minuto, senhor”, interrompeu o guarda prestes a tirar o revólver do coldre. “Como vou saber se você está falando a verdade?”

O homem de sobretudo lançou um olhar furioso para Zé Maria, que sentiu um calafrio percorrer pela espinha.

“Você vai se comportar se eu te soltar, Jorge?”, falou com uma voz amigável. Os olhos frios a cravejarem Zé Maria com mensagens subliminares. “Não vai tentar fugir, vai? Eu só preciso de um minuto para esclarecer a situação com nosso amigo da polícia, ok?”, continuou como se falasse com uma criança.

Zé Maria assentiu com a cabeça, sem dizer uma palavra, preenchido pelo medo. Os dedos do homem soltaram seu ombro dolorido. Ele se virou para o policial e Zé Maria percebeu que a frieza que guardava no olhar tinha mudado subitamente.

“Minhas credenciais...”, disse o homem de sobretudo entregando a carteira de detetive para o policial juntamente com um cartão onde estavam o nome de uma mulher e um telefone. “E esse é o nome da minha cliente. A esposa de Jorge. Se quiser, pode ligar para ela e confirmar toda minha história...”

Zé Maria olhou para os lados em busca de uma saída. Pensava em correr. Mas a mão do estranho o agarrou pelo colarinho da camisa enquanto o policial analisava os documentos. Estava preso.

“Isso não vai ser necessário”, respondeu o guarda tirando a mão do revólver e colocando-a no cinto, mais relaxado. “Ele não é perigoso, é?”

“Ele não machucaria uma mosca, seu guarda”, garantiu o homem de sobretudo com o sorriso mais simpático do mundo.

“Tudo bem então. Desculpe pelo incômodo.”

“Incômodo nenhum, seu guarda. Bom trabalho para você!”

“Para você também”, concluiu o policial dando as costas para a dupla. Zé Maria não parava de balançar a cabeça negativamente.

O homem de sobretudo se virou para o homem enfaixado que segurava firmemente. Ainda sorria, mas seus olhos readquiriram a aparência ameaçadora.

“Isso não foi muito esperto da sua parte, colega”, sussurrou para Zé Maria enquanto o retirava do meio da multidão, que tinha parado para assistir ao espetáculo. “Eu sei quem você é e onde esteve no último sábado!”

Zé Maria quase tropeçou, mas o homem de sobretudo não deixou. Ele o arrastava para fora da Rodoviária.

“Pelo estado em que seu amigo o deixou, eu diria que os negócios não saíram exatamente como o planejado, não é mesmo?”

Zé Maria balançou a cabeça negativamente. O homem de sobretudo o levava rumo um Maverick reformado com rodas grossas e pesadas. O carro tinha uma aparência imponente. Como se fosse capaz de atravessar uma parede de tijolos sem sequer arranhar a pintura.

“Entre”, ordenou o estranho.

Não havia opção. Zé Maria obedeceu e assistiu enquanto o estranho deu a volta no veículo e sentou no banco do motorista. Zé Maria tremia mais do que vara verde.

“C-co... como me encontrou?”, teve coragem de perguntar enfim.

“Está brincando?”, respondeu o homem. “Você não toma um banho desde sábado e ainda quer saber como te achei? Daria para sentir teu cheiro da China, colega! Já o teu amigo...”

“Que amigo?”

“O cara que fez isso na tua cara! Esse vai dar trabalho para encontrar, já que o cheiro dele parece mais a lembrança de um odor. A não ser, é claro, que você esteja disposto a me dar uma mãozinha...”

Então o medo de Zé Maria desapareceu por completo. Ele encarou o homem de sobretudo e reconheceu nele alguém tão ou mais forte que a criatura saída do pesadelo que o desfigurou. Não teve sucesso em matar João dos Santos quando teve a chance. Mas, talvez, o homem de sobretudo pudesse sair vitorioso da tarefa na qual ele tinha falhado.

Nota do autor: Após um breve recesso de fim de ano, estamos de volta para mais um capítulo do Gatuno! Espero que vocês curtam as novas aventuras assim como os novos personagens que passarão a surgir a partir de agora! Desejo a todos que aqui passarem um feliz ano novo! E fiquem agora com a prévia do próximo capítulo: João vai afogar as mágoas em um bar sem desconfiar que está sendo procurado! E Zé Maria mostra que está mais do que disposto a ajudar o detetive Cedric a colocar as mãos nos pescoços do Gatuno! Tudo isso e mais na próxima sexta-feira (para acertar os ponteiros)!!