sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Como cães e gatos - 1

Como cães e gatos

1: Procurado

O homem de sobretudo e cabelos negros tragou o cigarro antes de descartá-lo na sarjeta. Os olhos atentos reconheceram o movimento de homens de preto, óculos escuros e fones de ouvido ao redor do casarão. Grandes vans pretas estavam estacionadas na calçada. Ele caminhou sem pressa na direção dos seguranças

Eram 15h de uma segunda-feira ensolarada e o homem de sobretudo tinha um compromisso marcado com o dono do casarão.

Um homem de preto, musculoso e ameaçador, tentou barrar a entrada dele.

“Desculpe”, disse com a mão barrando o caminho do homem de sobretudo. “Mas estamos fechados hoje. Por favor, volte amanhã”.

O homem de sobretudo sorriu.

Três andares acima, o dono do casarão contemplava os estragos feitos à sua coleção enquanto viajava a negócios. Pedaços de armadura jaziam espalhados pelo salão, assim como armas medievais e outras peças de valor inestimável. O amuleto egípcio havia desaparecido. Mas o que mais o preocupava era uma velha caixa de ferro caída a um canto com o lacre estilhaçado.

Então, o som de gritos e luta chegou a seus ouvidos. Ele olhou calmamente no relógio. Seu convidado tinha chegado na hora marcada.

“Senhor!”, chamou um homem de preto ofegante na entrada do salão. “Precisamos tirá-lo daqui agora! Um louco está tentando entrar na casa e nem meus melhores homens conseguem detê-lo!”

“Não seja tolo, Adolfo. Diga a seus homens para afastarem-se. Cedric é meu convidado!”

“Isso não será necessário...”, avisou o homem de sobretudo do corredor. Ele acabava de subir as escadas e ajeitava as roupas enquanto procurava um isqueiro com uma das mãos. Um cigarro pendente na boca. “Já dei conta de todos seus seguranças inúteis...”

O dono do casarão olhou sobre o balcão, de onde vinham grunhidos de dor e blasfêmias. Lá embaixo estavam quase vinte homens caídos e outros tantos se arrastavam com olhos roxos e membros fraturados. O dono do casarão sorriu.

“Algum morto?”

“Não me rebaixe ao nível da escória com a qual está acostumado a lidar”, rosnou o homem de sobretudo acendendo o cigarro. “Devia tê-los avisado sobre o nosso compromisso. Não aprecio violência desnecessária. Por que me chamou?”

“Se bem me lembro, meu caro Cedric, eu e você temos negócios inacabados...”

O homem de sobretudo lançou um olhar penetrante sobre o dono do casarão. Chamas de ódio ardiam dentro dele. Jogou o cigarro que tinha acabado de acender sobre o balcão.

“Eu te devo um favor...”, disse enfim.

“E eu resolvi cobrá-lo!”, respondeu o dono do casarão.

“O que quer de mim, Colecionador?”

“Por favor, Cedric, me chame de Alberto. Não há motivo para formalidades entre nós...”

“O que quer de mim?”, repetiu o homem de sobretudo.

“Ouvi dizer que tem trabalhado como detetive nos últimos tempos”, continuou o dono do casarão, sem se alterar. “Caçando flagrantes de maridos infiéis para velhas ricas da alta sociedade? Não pensei que pudesse se rebaixar tanto...”

“Paga as contas e é um trabalho honesto. Diferente do que gente da sua laia está acostumada a fazer. O que quer de mim?”

O dono do casarão parou sobre uma mesa repleta de bebidas e se serviu de uísque. Encarou o homem de sobretudo. Estava sério agora.

“Alguém foi estúpido o bastante para entrar na minha propriedade e roubar algo de valor para mim”, respondeu secamente. “Quero que você encontre esse bandido e o traga aqui. Com vida. Ele também levou algum dinheiro que quero de volta. Estou disposto a lhe pagar R$ 20 mil pela captura do sujeito!”

“Sujeitos”, corrigiu o homem de sobretudo.

“Perdão?”

“Você fala como se apenas uma pessoa tivesse invadido sua casa”, respondeu o homem de sobretudo com as narinas sobressaltadas, em busca de alguma fragrância perdida. “Mas havia dois deles. Embora o odor de um seja mais difícil de captar do que o do outro...”

“Então irá encontrá-los para mim?”

O homem de sobretudo sorriu e deu as costas para o dono do casarão. Tinha um trabalho a fazer.

Do outro lado da cidade, João dos Santos abria uma lata de cerveja enquanto encarava uma pilha de dinheiro arrumada em cima da mesa do apartamento onde morava. Ali tinham exatos R$ 3,66 milhões de notas sujas de sangue. Era assim que ele encarava a fortuna. Por mais que tentasse, era incapaz de afastar da mente o que fizera ao pobre Zé Maria depois da traição que sofreu.

Ele bebeu a cerveja, que desceu amarga pela garganta. Estava rico e não sentia nenhum prazer nisso. Sua vontade era jogar o dinheiro pela janela e esquecer os horrores que passou para consegui-lo. Chegou a pensar em doar tudo para caridade. Sua tia mantinha um centro comunitário próximo dali e usaria o dinheiro somente para fazer o bem. Só que ela não estava disposta a receber nenhuma fonte de renda obtida por meios escusos, como João descobriu do modo mais difícil. O tapa que levou ao sugerir a idéia para tia ainda ardia na face. Não. Tinha que arranjar outra função para a fortuna maldita.

De repente, o telefone tocou no quarto. João se levantou para atendê-lo, mas parou na metade do caminho. Não podia acreditar no que via. Na cômoda ao lado da cama estava uma peça circular esverdeada com o desenho de um gato impresso na superfície. Era o mesmo amuleto que tinha arremessado um dia antes nas profundezas do Lago Serafim.

“NÃO!”, gritou ele para as paredes. “EU NÃO VOU VIRAR AQUELE BICHO DE NOVO! PODEM ESQUECER! E PODEM ME ESQUECER TAMBÉM!”

João agarrou o medalhão, abriu a janela e o jogou no telhado vizinho. Ele esperava que a peça de pedra se espatifasse em mil pedaços. Mas o amuleto simplesmente quicou duas vezes e parou recostado a uma parede, como se olhasse para João com desdém.

“ME OUVIU, BAST? OUVIU SEKHMET? NÃO TEMO VOCÊS E NÃO ESTOU INTERESSADO NESSE SERVICINHO SEM FUTURO! PROCUREM OUTRO TROUXA PARA FAZER SEU TRABALHO SUJO!”

João fechou a janela e as cortinas. Estava furioso e um pouco assustado. Deusas egípcias o tinham ressuscitado para que ser o avatar delas na Terra. E, claramente, seria mais difícil se livrar da maldição do que previamente imaginara. Olhou o relógio. Eram quase 17h. Boa hora para um drinque no Zona Proibida. Encontrar o pessoal. Clarear as idéias, pensou João e saiu do apartamento, sem olhar para a fortuna abandonada sobre a mesa.

A seguir: Antes das atrações do próximo capítulo, me desculpem pela demora na postagem. Foi uma semana agitada no trabalho. E a próxima promete ser bem movimentada também, visto que vamos entrar em esquema de plantão. Por isso, e por causa dos feriados de fim de ano, entraremos em um breve recesso até o ano que vem. Prometo voltar com força redobrada em janeiro. Por isso, desejo um feliz Natal e um próspero ano novo para todos os leitores do Gatuno! E vamos às atrações do próximo capítulo: O detetive Cedric começa sua busca pelos homens que roubaram o Colecionador! E o que ele irá encontrar deve surpreender quem tem acompanhado a história desde o princípio! Confira na primeira semana de janeiro! Até lá!

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

A marca do Gatuno - 7

7: Acerto de contas

Zé Maria estacionou o carro na frente de um pequeno prédio abandonado, com paredes sujas e pichadas. As mãos do bandido tremiam. Ele olhou para ambos os lados ao descer do veículo. Não havia ninguém por ali. Latidos de cachorro e o som constante de carros em uma via próxima eram tudo que conseguia escutar. Nada de sirenes, nada de gritos, nada de perseguição. Mesmo assim, não conseguia afastar o pressentimento de que alguém observava seus passos. Afinal, tinha matado um homem pela primeira vez a menos de uma hora. Nada mais natural que ficasse meio paranóico.

Pensou em João por um momento, no olhar de surpresa do velho amigo, mas afastou o pensamento o mais rápido que pôde. Primeiro, abriu o cadeado que trancava a porta do velho prédio. Depois, abriu o porta-malas. Ali estava uma sacola esportiva esverdeada com mais dinheiro do que poderia imaginar. Estava pesada. Tão pesada quanto um corpo humano. O preço de uma vida, pensou Zé Maria com amargor.

Então o som baixo, constante e ameaçador fez seu sangue gelar. O som de uma fera escondida na escuridão prestes a atacar.

Zé Maria deixou a sacola cair no chão e se virou, arma em punho. Nada. Nada para nenhum lado que olhasse. Pelo canto do olho, viu um vulto se movimentar em um telhado próximo. Antes que percebesse, duas balas saíram do cano do revólver com um estrondo. Não havia nada lá também.

“Quem diabos está soltando bombinhas na rua a essa hora da noite?”, perguntou um velho sonolento da janela de um dos prédios.

Zé Maria escondeu a arma. Disse para si mesmo que seus nervos tinham lhe pregado uma peça. E ele quase pôs tudo a perder. Fechou o porta-malas, agarrou a sacola e entrou no prédio antes que o velho questionasse o que estava fazendo.

Fechou a porta e subiu as escadas rapidamente. Procurou o interruptor na escuridão e acendeu a luz, que crepitou um minuto antes de iluminar fracamente o ambiente. Não havia muito para se ver. Só coisas velhas e sem valor. Zé Maria ficou em silêncio, a escutar o barulho baixo da lâmpada contra as batidas violentas de seu coração. Ele respirou uma vez profundamente e começou a rir.

“Tente se acalmar, meu velho...”, repetiu para si mesmo. “Você vai conseguir sair dessa sem um arranhão. Pode acreditar...”

Mais calmo, jogou a sacola sobre a mesa e a abriu para contemplar o tesouro com o qual sonhara durante tanto tempo. Antes que tivesse concluído essa simples tarefa, no entanto, a luz se apagou com um estalo.

Zé Maria olhou instintivamente para cima, na escuridão que se instalou. Então ouviu um som metálico vindo de fora do prédio. Como se alguma coisa tivesse arrancado a porta de entrada com força descomunal. Então um rugido inumano soou. Como o som de um leão em busca de sua presa.

Zé Maria agarrou a arma e mirou para entrada. Podia ouvir passos pesados na escada. Tão altos quanto as batidas do próprio coração, que ameaçava saltar do peito com a antecipação do confronto. Gotas de suor corriam sobre o rosto. Respirava com dificuldade.

Então os passos pararam. A poucos metros da porta. Zé Maria engatilhou a arma, preparado para acertar o que quer que entrasse no quarto. Os segundos se arrastavam sem que nada acontecesse. Por um momento, o bandido questionou a própria sanidade. Teria imaginado todos aqueles sons?

A porta se partiu em pedaços diante de um impacto destruidor.

“AAAHHHHHH”, gritou Zé Maria desesperado.

Seus dedos tomaram vida própria e puxaram o gatilho várias vezes. O clarão do revólver iluminou momentaneamente o pequeno quarto. O que Zé Maria viu naquele breve instante de clareza serviu apenas para estilhaçar o que restava da sanidade do bandido. Um tigre, pensou frebrilmente. Vou ser morto por um tigre!

Zé Maria apertou o gatilho até as balas acabarem. Não sabia se tinha acertado o animal ou não. Se jogou atrás de um sofá na esperança de escapar das garras da fera. Respirava com dificuldade. Todos seus sentidos pareciam despertos, especialmente a audição. Tentava ouvir qualquer movimento do inimigo que espreitava a escuridão. Mas só escutava os sons da noite do lado de fora do prédio e um mosquito a zanzar sem destino. Decidiu recarregar a arma.

Colocou a mão nos bolsos e amaldiçoou o som metálico de balas batendo levemente uma contra a outra. Então escutou uma risadinha que o deixou ainda mais assustado. Nenhum animal seria capaz de produzir um som como aquele.

“Q-qu... Quem está aí?”, exigiu.

Sem resposta. Zé Maria colocou a primeira bala no tambor do revólver.

“Olha, eu estou armado. Mas não tem motivo para a gente se matar por conta de nada. Tem uma fortuna em cima da mesa. A gente pode dividir e cada um seguir o seu caminho, o que acha?”

Silêncio.

“É tarde demais para isso, traidor!”, rosnou uma voz poderosa e ao mesmo tempo familiar.
Estaria sua mente lhe pregando truques?

“J-João?”, perguntou Zé Maria. A segunda bala em posição. “V-você tá vivo? C-co... como?”
Sem resposta.

Zé Maria decidiu terminar de uma vez o que estava fazendo. Não podia ser João. João estava morto. Ele tinha garantido isso. Mas e o tigre? Teria acertado o animal? Não podia mais escutá-lo, então era possível que ao menos uma ameaça tivesse sido eliminada. Tudo que precisava fazer era matar o sujeito que estava escondido em algum lugar próximo.

A arma estava recarregada. Zé Maria fechou o tambor e a engatilhou. Se sentia um pouco mais seguro. Ao se mexer, bateu em algo que rolou na escuridão. Com a mão livre, procurou pelo objeto e logo percebeu o que era. Uma lanterna. Talvez nem tudo estivesse perdido.

“Última chance, cara! A gente divide a grana e vaza! É pegar ou largar!”

“Sem acordos!”, respondeu a mesma voz no canto esquerdo do quarto.

Zé Maria se levantou e atirou duas vezes na direção do som.

A voz, apesar de rouca e mais grave, era de João. Não tinha dúvidas. No clarão da arma, pensou ter visto uma forma humana se mover rapidamente. Mas não podia ter certeza. O barulho dos tiros em um lugar tão fechado reverberava ameaçava estourar seus tímpanos. Teria acertado o inimigo? Após ficar alguns segundos parado, decidiu acender a lanterna.

“João?”, perguntou novamente.

Sem resposta. O facho de luz mostrou que os dois tiros disparados tinham acertado a parede. Não havia ninguém ali. Mas percebeu um vulto do lado direito e se virou naquela direção. Então a arma e a lanterna foram arrancadas de sua mão por um golpe poderoso.

Zé Maria gritou de dor. Suas mãos tinham sido cortadas por algo afiado.

A lanterna caiu no chão e virou várias vezes, parando com o facho apontado para Zé Maria e seu atacante. Só então o bandido pôde ver o terror que o ameaçava. Ele sentiu tudo desabar dentro de sua mente. Não conseguiu nem gritar.

“Não me chame de João, seu verme!”, rosnou a enorme criatura agarrando-o pela gola da camisa. “Para escória como você, eu sou e sempre serei o Gatuno! E vou garantir que você não se esqueça disso!”

A criatura com rosto de tigre e poderosos músculos levantou a mão livre acima da própria cabeça. Garras manchadas de sangue brilharam na luz da lanterna. As pupilas de Zé Maria se dilataram.

Do lado de fora, gritos aterradores preencheram a madrugada por instantes que pareceram intermináveis. Então o silêncio reinou sobre a noite. Até que uma criatura meio humana meio felina saiu do prédio abandonado com uma sacola a tira-colo. A monstruosidade colocou a mão no pescoço e tirou o que parecia ser um colar. Imediatamente, suas formas mudaram e, onde antes havia um monstro, agora caminhava um homem. Um homem que carregava o peso de uma vida no ombro esquerdo.

Epílogo

Dia seguinte.

João observava o nascer do sol sobre a ponte da Alvorada. Os raios refletiam sobre a superfície das águas do Lago Serafim afastando os horrores e loucuras de uma noite longa demais. Ele poderia até acreditar que nada do que passou fosse real. Apenas um pesadelo mais claro que o comum. Não fosse pelo objeto que carregava nas mãos e a sacola no porta-malas do monza preto que dirigia.

Deusas egípcias me deram uma segunda chance, pensou com amargor. E usei isso para manchar minhas mãos de sangue. O que fiz com Zé Maria... não deve se repetir. Nunca mais. Lamento, mas não serei um avatar dos deuses na Terra.

A mão de João se fechou sobre o amuleto que carregava. Sem pensar duas vezes, usou toda a força que tinha para arremessar o objeto o mais longe possível. A peça voou rumo ao sol antes de descer em um longo arco até atingir as águas escuras do lago.

“Pronto”, disse João para ninguém em especial. “Que essa maldição não recaia sobre os ombros de nenhum outro pobre coitado...”

João entrou no carro e ligou o som. Uma música triste e melancólica saiu das caixas de som. Ele deu partida e acelerou, querendo deixar para trás todas as memórias da noite anterior.
Enquanto isso, o amuleto chegava ao fundo do lago, onde parou. A peça brilhou intensamente por um segundo. Então as águas se revolveram, agitando as algas e, quando pararam, o amuleto não estava mais lá.

Fim do episódio

E assim chegamos à conclusão da primeira aventura do Gatuno! Espero que todos os leitores que acompanharam a história até aqui tenham se entretido com leitura tanto quanto eu me diverti na construção da história! Aviso também que a diversão não acaba por aqui! Na semana que vem, inicio uma nova história intitulada “Como cães e gatos”, que dão continuidade direta aos eventos relatados na Marca do Gatuno! E não vou parar por aí! Tenho material preparado para abastecer esse blog durante um bom tempo! Então, obrigado a todos por acompanharem o blog, e nos vemos novamente em uma semana! Ciao!

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

A marca do Gatuno - 6

6: Gatuno vive!

O vento soprou sobre o corpo imóvel de João dos Santos. Apenas a grama e as folhas de árvores se moviam no jardim do casarão na rua Barões do Cerrado. A noite era dominada pelo silêncio quando, sem nenhum aviso, o morto gritou.

João levantou-se como se tivesse acabado de levar um choque. Seu peito ardia e ele assistiu atônito enquanto três projéteis de chumbos eram expelidos de seu corpo e os buracos se fechavam como num passe de mágica. Levou aproximadamente um minuto para que ele se convencesse de que tinha acabado de ressuscitar.

“Estou vivo”, sussurrou. “ESTOU VIVO!!!”, gritou. “Cara, essa vai ficar para a história. Pensei que tinha ganhado uma passagem só de ida para a terra dos pés juntos. Mas... o que isso significa?”

João lembrou-se do encontro com as divindades felinas em algum plano de consciência superior de existência. Se estava em pé e respirando, tudo aquilo ocorreu de verdade. O que significava que ele tinha um débito a pagar. Algo como se transformar num avatar dos deuses na Terra...

Ele olhou para o amuleto que ainda carregava na mão. A peça brilhou intensamente. João podia sentir o poder fervilhando na jóia. Os olhos do gato encravados na pedra esverdeada pareciam encará-lo. De repente, sentiu uma vontade irrefreável de vestir a peça.

Lentamente, prendeu o feixe de bronze do colar em que o amuleto ficava pendente e o colocou no pescoço. O brilho da jóia esvaneceu aos poucos. Ele a sentia pulsar próxima do coração. Devagar. E, então, sem pulsação alguma.

“É só isso?”, perguntou.

E, como se as palavras invocassem os poderes do além, os olhos no amuleto lançaram raios cegantes na escuridão. João gritou de desespero e medo. Uma energia entrou violentamente através do seu peito, atravessou seu coração e se distribuiu por todo o corpo como eletricidade. Ele caiu de joelhos no chão. Podia sentir a energia se mover dentro de si. E começar a transformá-lo em algo mais do que humano.

As mãos doíam. Como se os ossos nas pontas dos dedos quisessem saltar para fora. Ele olhou para elas e percebeu que também começavam a mudar de formato. E, como pode notar, as mudanças não pararam por aí. Pêlos alaranjados começaram a sair de todos os poros do corpo. Pouco depois, apareceram garras. Ele sentiu o rosto se alargar. As orelhas se moverem para o topo da cabeça e ficarem pontudas. Os dentes cresceram pontiagudos na boca. Só então se deu conta do que estava acontecendo.

Estava se transformando em um deles. Em um Deus-gato. E a dor era incomensurável.

“NÃÃÃÃÃÃOOOOOOOO!!!”, bradou aos quatros ventos.

Tarde demais. A transformação estava completa. Seu corpo não doía mais. Uma palavra flutuava em sua mente. Uma palavra dita por Bast antes de mandá-lo de volta para o mundo dos vivos.

Gatuno.

“DEUSA DOS INFERNOS!!!”, berrou. “Ela não falou sobre nada disso...”

João analisou o próprio corpo alterado por breves momentos. Então notou que o amuleto, preso ao pescoço, havia sumido. Mas ainda podia sentir seu peso. Tentou tocá-lo. A peça continuava ali. Embora presa à pele dele de alguma maneira. João se perguntou o que aconteceria se retirasse a peça, se isso o faria humano novamente. Mas não teve tempo de testar a teoria.

O barulho de algo se movendo chamou sua atenção. Só então percebeu as mudanças em sua visão noturna. O mundo parecia mais vivo. Mais cheio de luz. Ele podia enxergar sombras na escuridão como se estivesse debaixo do sol do meio-dia. Mas a primeira coisa que viu com os novos olhos que as deusas lhe deram não o deixou saborear os novos sentidos.

Uma poeira branca escapava por baixo das portas do casarão e dançava no ar noturno em espirais, que não demoraram a tomar uma forma concreta. João deu um passo para trás. A estátua do sátiro que vira anteriormente no interior da mansão tomava vida diante dos seus olhos. Demorou poucos segundo para que a estátua retomasse sua solidez pétria.

Só que, em vez de ficar parada, a estátua se moveu e encarou a criatura semi-humana que a encarava estupidamente no jardim abaixo. O sátiro já não sorria mais. Sua expressão dura de mármore mostrava apenas raiva e descontentamento com um inseto que invadiu o lar de seu mestre. E mãos gigantescas se aproximavam para esmagá-lo.

O mais puro instinto fez com que João saltasse segundos antes das mãos de pedra baterem sobre o local onde se encontrava. Ele parou de pé, em cima de uma cerca de pedra, e encarou o novo inimigo.

“Isso tudo é loucura...”, comentou para ninguém em especial.

O sátiro atacou novamente. João se desviou do golpe e pousou no antebraço da criatura. Como um relâmpago, subiu até o ombro e saltou na direção da enorme cabeça. Ele gritou e desferiu um golpe no olho da estátua. As garras arrancaram uma camada de mármore e o sátiro se afastou, como se estivesse realmente ferido. João se agarrou na lateral da casa e subiu no telhado.

Não adiantava tentar argumentar com a criatura. Ela não tinha vida. Tinha certeza disso. Seus instintos lhe diziam. Mas também não via meios de derrotar o enorme colosso. A situação não era das melhores.

O sátiro se virou e viu o pequeno homem-tigre no teto da casa. Ele grunhiu os dentes e preparou-se para uma nova investida. Mas, nesse momento, o som de sirenes distantes ecoou pelo ar. Alguém provavelmente chamou a polícia por conta do barulho dos tiros disparados por Zé Maria no que parecia ser outra vida. O sátiro parou. Olhou para direção do som. Então se virou para João, com um olhar de mais puro ódio, e começou a se desfazer novamente. Logo, uma espiral de poeira voltava para dentro da casa pelos vãos entre as portas e janelas. João estava sozinho novamente.

Ele ainda tentava digerir as impressões do breve confronto. Mas não tinha tempo. A polícia se aproximava e isso era suficiente para que também tratasse de sumir dali. Usando os músculos de sua nova forma, correu pelo telhado e saltou na escuridão. Alcançou outro prédio e continuou sua corrida desenfreada até uma posição que considerou relativamente segura. Só então parou.

Não estava cansado. Longe disso. Sentia como se pudesse fazer aquilo a noite inteira. Nunca se sentiu tão vivo. E nunca sentiu tanta raiva antes. Pois os eventos que o levaram a se transformar naquela monstruosidade ainda borbulhavam como um vulcão em sua mente.

Zé Maria, pensou com uma raiva mais afiada que uma faca. Você deve pagar pelo que me fez!

“Não faria isso se fosse você...”, disse uma voz familiar.

João se virou.

“Você?!”

Bubastis estava sentado na beirada do prédio e encarava a criatura metade humana metade felina com descaso.

“As malditas que fizeram isso comigo te mandaram para me espionar agora? É isso?”

“Se entregar ao ódio e à vingança não é o caminho de Bast”, se limitou a responder o gato.

“O que quer dizer?”

“Você é um cara esperto. Pode descobrir sozinho. Apenas lembre-se do que Bast lhe disse...”

O gato se levantou e preparava-se para partir. João saltou na frente do animal.

“Não pense que irá se livrar de mim com frases enigmáticas bichano!”, avisou João agarrando Bubastis pelo pêlo. “Quero mais informações sobre o que suas amigas fizeram comigo! E quero agora! Não pretendo passar o restante da vida como um personagem de estampas de cereais!”

“Nem precisa. Você pode voltar a ser humano quando quiser...”

“Mas como eu faço isso?”

Bubastis sorriu e piscou. Então escorregou das mãos de João, como se tivesse virado água, e desapareceu na escuridão. João procurou em volta por qualquer sinal do gato, mas não havia nada à vista. Estava sozinho novamente.

E a menos de 500 metros do local onde tinha combinado de fazer a divisão do dinheiro roubado com Zé Maria...

A seguir: João voltou dos mortos como uma criatura saída de sonhos inimagináveis, mas o homem que destruiu sua vida ainda encontra-se livre. O que acontecerá quando Gatuno encontrar seu assassino? Descubra em uma semana na conclusão de A marca do Gatuno!

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

A marca do Gatuno - 5

5: Presente dos deuses

Uma luz cegante envolveu João quando atravessou as cortinas. Ele não sabia onde estava e demorou um pouco até que a visão se adaptasse ao novo ambiente em que se encontrava. No entanto, quando seus olhos enfim clarearam, o que viu o impressionou profundamente.

Estava dentro de um enorme salão que parecia se estender por toda a eternidade. Uma escadaria gigantesca com um trono magnífico encontrava-se na frente dele. O ar carregava sussurros de criaturas misteriosas e pequenas luzes flutuavam e brilhavam pelo salão. Mas, para onde quer que olhasse, não havia um ser humano ou qualquer outro tipo de entidade visível.

“Olá?”, chamou João sem saber como proceder.

Por breves momentos, nada aconteceu. Então João foi arrancado do chão por um golpe vindo de lugar nenhum. Ele sentiu-se tonto por um instante e percebeu que seu corpo se elevava no ar. Só então entendeu o que tinha acontecido. E quase desejou não ter encontrado Bubastis após a morte.

Olhos inumanos o encaravam com frieza. João se sentiu hipnotizado. Os olhos pareciam ter o tamanho do universo, com constelações a dançarem por duas íris amarela-esverdeadas até serem consumidas em pupilas escuras como o próprio abismo entre as dimensões. Estava tão vidrado que apenas um aperto fez com que João percebesse seu corpo, preso em um punho gigantesco, coberto por pêlos e com garras pontiagudas. Só então João conseguiu gritar apavorado.

Os olhos se afastaram consideravelmente e ele pôde observar melhor seu captor. E se sentiu um pouco ludibriado quando percebeu que estava nas garras de um enorme gato. Ou gata, a julgar pelo corpo humano que se delineava abaixo da cabeça felina. Um vestido de seda cobria os seios da criatura, que usava um colar de ouro com emblema felino semelhante ao do amuleto que João roubara. As curvas eram familiares o suficiente para mostrar que estava nas mãos de uma mulher. E uma mulher muito bonita, apesar das diferenças óbvias.

“Um humano?”, perguntou a voz assombrosa da criatura, estudando-o. “O que um humano faz em minha casa, sem nenhum convite formal ou guia espiritual?”

“Por favor! Não foi idéia minha! Um gato me trouxe até aqui! O sacaninha sumiu, mas aposto que deve estar dando risada por aí! Juro por Deus!”

“Os gatos são bem vindos em meu reino”, respondeu a criatura misteriosa apertando-o. “Mas humanos não são confiáveis! Diga! Que gato é esse que o trouxe até aqui?”

“E-ele disse que se chamava Bubastis...”, respondeu João arfando para conseguir respirar.

“Bubastis...”, disse a criatura surpresa. O aperto instantaneamente se desfez e a enorme criatura colocou o humano delicadamente no chão. “Então deve haver um bom motivo para sua presença aqui. Diga-me, pequeno homem, qual o seu nome?”

“Meu nome é João dos Santos, sua majestade. Ou Jonhy, como alguns amigos costumam me chamar. E a senhora?”

“Não sabe quem sou?”, perguntou a criatura pasma.

João balançou a cabeça negativamente.

“Sorte sua que não encontrou com a minha irmã, então. Ela o faria em pedaços se lhe fizesse uma pergunta dessas. O criador me nomeou Bastet. Mas os humanos me chamam de Bast. Sou a deusa da fertilidade, do sexo e das mulheres grávidas. Como pode um ser humano como você desconhecer a minha existência? Não acredita no poder dos deuses?”

“Desculpe, senhora, mas sou apenas um cara que tenta levar a vida aos trancos e barrancos lá do lugar de onde venho. Não entendo muito desse lance de divindades ou de mitologia. Não é... da minha época, entende?”

“Claro. Achei suas roupas estranhas mesmo. Acredito, então, que você está deslocado no tempo. Mas não me parece um viajante cronal. Imagino que exista outra razão para estar aqui...”

“Eu morri...”

“Ah!”, disse a deusa felina com malícia, sentando-se em seu trono. “E imagino que não deva ter gostado muito disso, não é mesmo?”

“Nem um pouco, senhora.”

“Então, veio até mim atrás de uma... dádiva?”

“Foi o que o gato me prometeu. Uma segunda chance.”

“Graças de deuses não são dadas levianamente, meu caro João. Acho que até um ignorante como você saiba disso, não?”

João sentiu um arrepio percorrer pela espinha. Não estava disposto a oferecer a própria alma como moeda de barganha. Enquanto pensava o que responder, colocou a mão nos bolsos da jaqueta e sentiu a presença de algo que repousava ali. Ele pegou o objeto e o olhou surpreso.

“O que está fazendo, pequenino?”, questionou a deusa, curiosa.

João lhe mostrou a peça que segurava na mão. A deusa recuou, surpresa novamente.

“Acho que posso lhe oferecer isso”, respondeu João. “Imagino que foi o que me colocou nessa enrascada toda mesmo. Só depois que topei com esse amuleto que as coisas ficaram realmente esquisitas no mundo real...”

“Você!”, apontou a deusa de pé e impressionada. “Irmã!”, gritou para os enormes corredores que rodeavam a sala. “Sua presença é requisitada imediatamente!”

De repente, as luzes do salão diminuíram. Os sussurros alegres que ouvira antes agora davam lugar a o tagarelar de pequenas criaturas assustadas. João deu um passo para trás, apreensivo.

Passos que ressoavam como trovões distantes surgiram de um enorme corredor que não tinha visto antes. Olhos amarelados brilhavam na escuridão. Então, outro ser gigantesco adentrou o salão. Este também tinha corpo de mulher e a cabeça de uma leoa. Parecia extremamente perigosa e sorriu maliciosamente ao ver a pequena forma de João.

“Ora, irmã...”, disse a desconhecida com uma voz cavernosa. “Não me diga que quer dividi-lo comigo? Essa coisinha mal serve como um aperitivo...”

“Olhe atentamente”, ordenou Bastet.

A cabeça de leoa voltou-se para João, com desdém. Estava a menos de dois metros dele e o sorriso nos lábios lhe diziam que, a qualquer momento, poderia abocanhá-lo e engoli-lo sem que o humano pudesse reagir. João se encolheu levemente. Então, os olhos da leoa brilharam e ela se afastou rapidamente.

“O amuleto!”, exclamou simplesmente. “Achei que estava perdido...”

“Bubastis o trouxe até nós”, explicou Bast.

“Um humano?”

“Os tempos mudam, irmã...”, respondeu Bast olhando para João. “Mas o destino é inexorável. João dos Santos, peço que coloque o amuleto em seu pescoço agora.”

João pensou em perguntar o porquê, mas julgou melhor apenas obedecer. Sentia o perigo no ar. Provavelmente por causa da deusa com cabeça de leoa. Algo nela o deixava extremamente inquieto. Olhou para o amuleto com o rosto de gato e colocou-o no pescoço. O peso parecia correto. Nem muito pesado, nem muito leve. Quando a peça bateu em seu peito, foi como se uma conexão acabasse de ser feita. Ele olhou para as divindades. Ambas sorriram.

“Pronto”, disse Bast. “Não há mais como voltar atrás. Você será nosso novo avatar na Terra, João dos Santos. Um sopro nosso lhe devolverá à vida e o amuleto que carrega será sua ligação conosco. Apenas você poderá acessar nosso poder e esperamos que o faça com sabedoria, ou as conseqüências serão devastadoras. Está preparado para retornar?”

“Espere um minuto...”, pronunciou João, ignorando por um minuto o medo que percorria seu corpo. “É só isso? Eu coloco um colar e fica tudo numa boa?”

Bast olhou para a irmã, com ares de preocupação. Mas a divindade com cabeça de leoa caiu na gargalhada.

“Sinto que isso será divertido, irmã. Ele realmente não faz idéia do poder que carrega nas mãos...”

“Não tem graça, Sekhmet. Ele veio até nós por um motivo. Até você, irmã, deve perceber isso...”

“Não até ele cair nas minhas graças”, respondeu a divindade, desafiadora. “Por enquanto, irmã, deixarei-o aos seus cuidados. Me chame se precisar de alguma coisa...”

A divindade com cabeça de leoa deixou o salão, que voltou a ficar mais iluminado quase imediatamente.

“O que ela quis dizer com isso?”, perguntou João para Bast.

“Não dê bola para Sekhmet. Ela é a deusa das guerras e das doenças. Gosta de colocar a dúvida, ou germes do medo, como ela diria, na cabeça das pessoas. Mas é importante que você entenda, João dos Santos, o poder do objeto que carrega. Ele foi um presente do nosso senhor, Rá, para a Mãe-Terra. Somente espíritos dignos podem carregá-los e se tornar verdadeiros avatares da Justiça celestial. É um fardo deveras pesado. Mas ainda existe a chance de você deixá-lo para trás e seguir sua jornada, se assim o desejar.”

“Só que eu estaria morto para sempre e meu espírito perdido no mundo imaterial, não é mesmo? Não, minha senhora. Não é isso o que quero. Se tenho que me tornar o avatar de deuses para retornar ao meu mundo, então é isso que farei. Seja quais forem as conseqüências.”

A deusa sorriu com compaixão.

“Então, volte, pequeno gatuno...”, disse a divindade assoprando em sua direção. “Volte para seu corpo e esteja preparado para a transformação!”

E o sopro fez com que o corpo de João se desfizesse como um castelo de areia no meio de um redemoinho. Seu espírito deixou o mundo dos deuses e caiu em direção ao mundo dos homens, onde eventos além da compreensão humana começavam a se desencadear em uma progressão preocupante.

A seguir: João conseguiu a segunda chance que queria! Mas a que preço? Descubra no próximo capítulo, onde enfim ocorrerá o nascimento do Gatuno! Em uma semana!

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

A marca do Gatuno - 4

4: O reino dos mortos

Desespero. João encara o corpo sem vida em sua frente e sente como se estivesse dentro de um pesadelo. Afinal, é ele quem está caindo com três rombos no peito na grama.

Estou morto?, questiona-se. Não posso estar morto. Sou jovem demais para morrer!

“Ah, as famosas últimas palavras...”, comenta uma voz desconhecida no escuro. “Não importa quanto tempo passe, o disco nunca muda...”

“Hein?”, pergunta João se virando. Mas não há ninguém atrás dele. Ninguém além de um gato siamês que o olha com descaso. “Quem está aí? Que tipo de brincadeira é essa?”

O gato abre a boca. Por um segundo, João pensou que fosse miar. Mas o que fez em seguida deixou seus nervos à flor da pele (ou o mais próximo que um espírito desencarnado possa chegar a isso).

“Que foi? Ficou cego depois de morto?”, pergunta o gato.

O ladrão grita, assustado. “Você é um gato!”, acusa.

“E você é um espírito chato e sem graça! Sua mãe nunca te ensinou que é feio apontar para os outros?”

“O que está acontecendo?”

“Você morreu! Bem vindo ao pós-vida! Sou Bubastis!”

“João dos Santos”, responde o ladrão automaticamente olhando para o corpo morto. “Tem certeza que isso não é algum pesadelo maluco?”

“Absoluta!”

“Então... o que acontece agora?”

“Você tem uma moeda?”

“Como?”

“Uma moeda”, repete o gato.

“Não”, responde João. “Por quê?”

“Para pagar o barqueiro. Não importa, na verdade. Pelo que vejo, você tem três opções. Primeiro, pode procurar pelo túnel de luz para abandonar o plano terreno e seguir para o desconhecido, destino de todas almas humanas no final de tudo. Segundo, pode permanecer nesse plano como uma forma desencarnada, assombrando velhos casarões ou esquinas movimentadas até, eventualmente, reencarnar. Ou pode me acompanhar e tomar a porta de número três.”

O gato aponta com o focinho para o vazio e João vê uma porta de madeira no meio do jardim. O número três gravado em sua superfície.

“E o que tem por trás da porta número três?”

O gato sorri com malícia. “Você não está morrendo de curiosidade?”

“Não. Eu já estou morto.”

“Oh. É mesmo! Hehehe.”

“O que tem atrás da maldita porta?”

“Qual o seu problema? Não tem senso de humor? Humanos! Vocês levam tudo a sério demais! Quer saber o que tem atrás da porta? Pois bem, lá está a sua chance de desfazer esse pequeno episódio inconveniente e retornar ao mundo dos vivos, se isso lhe interessa. Pessoalmente, acho que o mundo está melhor sem você. Quanto menos macacos pelados melhor. Essa é minha opinião.”

“Viver novamente?”

“Você é retardado? Será que preciso ficar repetindo tudo o tempo todo?”

“Mas tem alguma pegadinha, certo? Como vender minha alma ou coisa do tipo?”

“O que eu iria fazer com uma alma fedorenta que nem a sua? Já te falei qual é o negócio, se quiser viver novamente, só tem que me acompanhar e meus chefes irão lhe explicar os termos da sua ressurreição. Se achar que é uma má idéia, sinta-se livre para escolher entre os outros dois caminhos que lhe expliquei anteriormente. Então, o que vai ser? Vem comigo ou me deixa em paz e segue seu caminho para o desconhecido?”

João reflete sobre a questão por um minuto e logo percebe que não tem como deixar passar a oportunidade.

“Tudo bem, bichano. Vamos nessa.”

“O nome é Bubastis, sabichão, e é bom que você se lembre dele se quiser voltar à vida sem uns arranhões a mais, está me entendendo?”

A porta se abre e uma luz ofuscante escapa de dentro dela. João cobre os olhos. Sente medo por um segundo. E então segue o gato pelo estranho portal, que desaparece em seguida. Para trás, fica apenas um cadáver abandonado em um jardim silencioso.

Para João, no entanto, a jornada estava apenas começando. Por um momento, foi como se o tempo e o espaço o dobrassem em diversas direções ao mesmo tempo. Em seguida, a experiência passou e ele estava em um lugar diferente.

João estava de joelhos e podia sentir seu corpo novamente. Estava em um corredor iluminado por piras elevadas que emitiam luzes com vários espectros de cor. Ele olhou ao redor e ficou impressionado com o que viu. Paredes feitas com blocos de pedra sólidos e imensos. Blocos repletos de hieróglifos, com desenhos de criaturas inumanas com partes humanas e outras partes animais. Seus dedos correram sobre os desenhos, que pareciam passar uma mensagem antiga, ou mesmo divina...

“Você vai ficar aí parado, enrolando?”, perguntou Bubastis, impaciente. “Se já se acostumou com os efeitos colaterais da passagem, sugiro que sigamos em frente. Não temos tempo a perder.”

“Onde estamos?”, questionou João, se levantando.

“Em um lugar sagrado, além do espaço e do tempo. Na casa dos antigos.”

“E o que viemos fazer aqui?”

“Você tem uma audiência com a minha senhora. Ela o aguarda além daquela passagem. Lamento, mas só posso conduzi-lo até esse ponto. Você terá que fazer o restante do caminho sozinho.”

João olhou adiante. A passagem escurecia levemente mais para frente. Véus de seda bruxuleavam no fim do corredor, como portas para outro reino misterioso.

“Quem é sua senhora?”, perguntou João se voltando para Bubastis.

No entanto, o gato não estava mais lá. Sumiu em pleno ar, como se nunca tivesse existido. João engoliu em seco e seguiu em frente, cauteloso. Uma brisa leve partia da câmara adjacente. Ele pensou escutar sussurros amigáveis e sedutores escondidos nas dobras do vento.

Por um momento, sentiu um medo profundo do desconhecido. Olhou para trás e viu a porta que o tinha levado até aquele ponto. Ainda não era tarde demais para atravessá-la e voltar ao plano terreno. Mas, se fizesse isso, estaria definitivamente morto e ficaria sem saber como sua história poderia ter tido um fim diferente. Ele engoliu em seco e seguiu em frente. A curiosidade matou o gato, pensou enquanto atravessava os véus. Só espero que não me mate também. Pelo menos, não novamente...

No corredor, em frente à porta de retorno para Terra, estava Bubastis. O pequeno gato estava sentado com o olhar fixo nos véus que João acabava de atravessar. Ele observava e sorria. O rato caiu na armadilha.

A seguir: O espírito de João prossegue sua jornada pelo reino dos mortos, onde deuses antigos o aguardam! A origem de Gatuno continua em uma semana! Não perca!

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

A marca do Gatuno - 3

3: O amuleto

A morte se aproxima a cada lufada de ar que João inspira com dificuldade. Ele sente as forças se esvaírem cada vez mais rapidamente de seu corpo. Lembra-se da alegria que sentiu momentos antes como algo perdido no tempo. Como se anos tivessem passado desde aquele momento ao invés de poucos minutos. Mesmo assim, ele se concentra nas memórias e se afasta rapidamente do agonizante presente.

Começou logo depois que ele e Zé Maria venceram o primeiro obstáculo da empreitada: um muro de dois metros e meio de altura. Zé Maria precisou da ajuda do colega para escalar a parede. Mas João subiu com técnicas de Le Parkour, usando outra parede como apoio para saltos rápidos e precisos. Dentro do terreno, os dois se esconderam atrás de um arbusto. Zé Maria estava louco para falar alguma coisa, mas João ordenou que ficasse calado com um gesto.

O plano era relativamente simples. Os dois entrariam na casa pelo jardim, longe dos olhos de vizinhos curiosos, e se separariam dentro da casa. Zé Maria ficaria responsável pela vigilância da rua, em busca de sinais de perigo. E João se encarregaria de arrombar o cofre e pegar o dinheiro. Em seguida, informaria o colega do sucesso da missão. Zé Maria buscaria o carro de fuga enquanto João se encarregava de reunir as pilhas de dinheiro dentro de uma sacola esportiva. Simples.

Os dois atravessaram o jardim e pararam ao lado de uma janela. João usou um cortador de vidro para abri-la e a dupla entrou no casarão, onde imperava o silêncio. Zé Maria estava nervoso.

“Ok”, sussurrou João. “Vamos checar o equipamento...”

“Essa estátua me dá arrepios”, comentou Zé Maria olhando para o enorme sátiro no centro do casarão. “Parece viva...”

“Esqueça o raio da estátua, Zé. Teste o walkie-talkie.”

Zé Maria pegou o aparelho e o ligou. João fez o mesmo com o seu. Ambos estavam operantes e prontos para uso.

“Tudo bem”, disse João. “Para chegar na entrada da casa, você tem que pegar aquele corredor”, apontou. “Não use a lanterna ou algum vizinho pode perceber o movimento. Teremos que trabalhar no escuro. E, lembre-se, qualquer sinal de perigo, é só me avisar pelo rádio, beleza?”

“Beleza”, concordou Zé Maria, meio incerto.

João bateu no ombro do colega, como incentivo, e saiu apressado pelas escadas do casarão. Ele subiu silenciosamente e sem esbarrar em nenhum móvel da residência. Não teve problemas para encontrar a sala do cofre, onde tinha estado um dia antes. Ali, fechou as cortinas e acendeu a lanterna. Era hora de trabalhar.

Checou o cofre novamente. Era uma peça velha e corroída pelo tempo, com claros sinais de oxidação. A trava era inteiramente mecânica, o que facilitava ainda mais o trabalho. Retirou um estetoscópio da sacola e o encostou na porta metálica enquanto buscava pela combinação certa para abrir o cofre. Não demorou mais do que cinco minutos. Então escutou o barulho da trava se abrindo e seu coração se encheu de alegria. Abriu a porta de ferro.

Pilhas de dinheiro desfilaram diante dos olhos de João. Reais, dólares, euros e moedas que ele não conseguia sequer reconhecer. Sorriu de orelha a orelha. A fortuna era muito maior do que tinham estimado. Provavelmente, a sacola esportiva que carregava não daria conta de carregar nem metade do tesouro. Mas seria o suficiente para que ele e Zé Maria nunca mais precisassem trabalhar novamente.

João agarrou o walkie-talkie que carregava na cintura.

“Zé?”, chamou.

“Na escuta. Como estão as coisas?”

“Como férias nas Bahamas, colega! A grana é nossa!”

“Ótimo! Vamos dar o fora daqui então!”

“Estou terminando as coisas por aqui e já desço. Os drinques hoje são por minha conta. Câmbio e desligo.”

João guardou o walkie-talkie. Em seguida, encheu a sacola esportiva com todo dinheiro que conseguia carregar. Menos da metade do conteúdo total do cofre. Algo em torno de R$ 3 ou R$ 4 milhões, pelos cálculos do bandido. João fechou o cofre, a sacola, estudou o ambiente para se certificar que não estava esquecendo nada e começou o caminho de volta.

Mas parou diante de um salão com objetos estranhos. Lembrou do amuleto que lhe chamou atenção um dia antes. Que mal faria levá-lo também?

Deixou a sacola no chão e abriu a porta do salão. Imediatamente, todos os sons do mundo pareceram ser sugados para uma dimensão alternativa. Um silêncio sepulcral preenchia o recinto. Armaduras medievais posicionadas na entrada e nas paredes do salão davam ao lugar um ar de mistério. João não deu atenção a nada disso. Seus olhos estavam voltados para o amuleto verdejante que parecia brilhar fracamente na escuridão. Ele avançou.

João pegou a peça com uma reverência exagerada e a contemplou na escuridão. Era perfeita. Ele podia ver formas refletidas na superfície. Viu seu próprio rosto e, de repente, outra forma mais escura atrás dele.

Se virou por puro reflexo e o que viu em seguida quase o paralisou de medo. As armaduras da sala, tomadas de vida, avançavam para cima de João no mais completo silêncio.

A mais próxima estava a ponto de abatê-lo com uma enorme espada. Por pouco conseguiu evitar o golpe, que destruiu a peça onde antes se encontrava o amuleto. Mas a surpresa fez com que perdesse o equilíbrio e caísse de costas no chão, derrubando um monte de objetos misteriosos no caminho.

Nenhum barulho, pensou o jovem. Nada dentro dessa sala faz barulho.

A armadura silenciosa não parecia abalada com nada daquilo. Ela levantou a espada novamente e João percebeu que as outras armaduras estavam cada vez mais próximas. A mente do ladrão trabalhava a mil por hora, em busca de uma rota de fuga. Não havia nenhuma.

A espada do primeiro atacante desceu novamente. Instintivamente, João pegou uma caixa de ferro caída no chão e a usou como escudo. A arma atingiu o pequeno receptáculo com violência e partiu o lacre. João escutou o impacto. O primeiro som que escutava naquele salão de loucuras. E então uma explosão de som e luz tomou conta do ambiente.

Meio cego com o brilho, João se levantou e percebeu que as armaduras chacoalhavam, pegas de surpresa pela luz inesperada e a súbita invasão de som. Agora!, pensou João com lucidez.

Ele se levantou com um pulo e empurrou a armadura que o atacava para o lado. O inimigo se desmontou com o impacto. Outra armadura levantou lentamente um machado. Mas João já tinha passado por ela. Ele correu com nunca correu antes. Derrubou mais duas armaduras no caminho antes de alcançar a segurança do corredor.

Fechou a porta do salão com um estrondo e respirou ofegante enquanto buscava uma explicação racional para o que havia acabado de acontecer. O amuleto com rosto de gato, esquecido em seu punho fechado. Foi quando percebeu que não estava sozinho. Uma forma humana se aproximava na escuridão. João prendeu a respiração.

“João?”, perguntou Zé Maria, surgindo no corredor. “Está tudo bem, cara? O que aconteceu?”

João respirou aliviado.

“Temos que sair daqui o quanto antes, cara!”, respondeu João se aproximando da sacola de dinheiro. “Você não vai acreditar nas defesas que o dono maluco desse lugar tem...”, João parou subitamente, os olhos voltados para as mãos do colega. “Pensei que tinha deixado clara minha opinião quanto ao uso de armas...”

“O quê? Isso?”, perguntou Zé Maria como se tivesse acabado de perceber que estava carregando uma pistola. “Foi mal. Não queria te assustar. Não trouxe ela para o assalto...”

“Do que está falando?”, questionou João com cautela.

Zé Maria sorriu com desdém. “Você pensou mesmo que podia fazer o que quisesse nessa cidade que ia ficar tudo numa boa, não é mesmo?”

João se afastou da porta e da sacola de dinheiro. Entendia perfeitamente o que estava acontecendo e não gostava nem um pouco.

“Espera um minuto, Zé. Somos amigos. Não tem motivo para...”

“Cale a boca!”, interrompeu Zé Maria lhe apontando a arma. “Você não sabe como tem sido trabalhar com você! Não faz a menor idéia! Depois de todas as traições...”

“Traições? Como assim, cara? A gente não se vê há anos...”

“João dos Santos, o grande conquistador!”, interrompeu Zé Maria novamente com os olhos repletos de ódio e loucura. “É óbvio que você não lembra. Por que deveria? Eram apenas mulheres para você! Não passavam de aventuras de uma noite ou duas! Mas não era assim para mim! Eu amei cada uma delas e nunca tive uma chance sequer! Você sempre chegava nelas antes de mim! Parecia uma sombra a me assombrar! Foi um pouco por conta disso que me mudei para cá, para longe de você. Então conheci Anita, uma mulher maravilhosa por quem me apaixonei. Estava tudo indo bem. A gente se gostava e tal. E aí ela veio com um papo que nunca ia dar certo entre a gente. Que tinha encontrado outro cara.”

Tudo ficou claro de repente.

“Anita? Ela veio até mim, cara! Juro por Deus! Se eu soubesse que...”

“Cale a boca! Cale a boca!”, ordenou Zé Maria novamente. Ele parecia possuído. Com cólera. Os olhos brilhavam, ameaçadores. “Não estou interessado nas suas mentiras! Essa grana vai resolver a minha vida e não vou ter que pensar nesse dia nunca mais! Nem vou ter outra garota roubada por um traíra como você!”

Lágrimas rolavam dos olhos de Zé Maria. Mas não era tristeza, João percebeu. Era raiva. Raiva pura. Ele apontou a arma para o amigo com uma determinação assustadora.

“Zé!”, gritou João sem saber o que dizer.

Mas era tarde demais. O amigo puxou o gatilho três vezes. As balas explodiram no peito de João e o lançaram para trás. Até a vidraça e, de lá, até o jardim.

A mente de João retorna ao presente. O sangue escorre pelo canto da boca. Respirar é quase impossível. A dor já parece distante, como uma memória.

Então é assim que tudo acaba, pensa o bandido. Mas ainda é tão cedo...

E os pensamentos deixam de existir. A vida se esvai com um último expirar. O corpo de João jaz inerte no jardim do casarão. A mão do bandido se abre lentamente e o amuleto com rosto de gato parece brilhar por um segundo, antes de perder sua luz por completo.

E tudo muda novamente.

A seguir: O personagem principal morreu, mas a jornada do Gatuno está prestes a começar! Esteja aqui em uma semana para testemunhar os eventos que levarão ao nascimento de uma lenda! Em uma semana!

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

A marca do Gatuno - 2

2: O plano

Rua Barões do Cerrado. Dia seguinte.

O molho de tomate escorreu do cachorro-quente para a camisa de Zé Maria, que condenou o azar com um rosto enfezado. João sorriu e devorou o que restava do cachorro-quente que tinha em mãos. Do outro lado da rua, estava uma enorme mansão de estilo vitoriano com uma loja de antiguidades construída no térreo

“O dono desse lugar é obviamente louco”, comentou João para o amigo, que ainda tentava limpar o estrago na camisa.

“Mas endinheirado pra caramba! E é isso que nos interessa!”, emendou Zé Maria.

“Tem certeza de que quer levar isso adiante?”

“Claro que sim! Já discutimos isso ontem! Só não entendo o que nos adianta vir aqui hoje...”

“Você não espera que eu vá roubar um magnata sem estudar o terreno antes, não é? Vai que ele tem algum tipo de defesa secreta que teu camarada esqueceu de mencionar ou que não conhece?”

“Bobagens. O lance é seguro. Mas, se quer realmente conferir, como pretende fazer isso?”

“Ora”, respondeu João com um leve sorriso. “Entrando pela porta da frente, é claro!”

“Espere, você não...”

Mas João não esperou o colega completar a frase. Atravessou a rua com passos rápidos e adentrou a loja de antiguidades.

Lá dentro, se deparou com um lugar repleto de todo tipo de quinquilharia. Estátuas de madeira de deuses primitivos, bolas de cristal, revistas velhas e até roupas de gente famosa enfeitavam as prateleiras. Todos objetos marcados com tarjas de preços astronômicos. Uma senhora estudava muito seriamente uma escultura que se assemalhava a um pigmeu muito excitado.
João segurou o riso e fingiu ser apenas mais um cliente enquanto estudava o ambiente. Um velhinho corcunda de longos bigodes brancos era o único funcionário da loja, que realmente não demonstrava possuir nenhum tipo de vigilância ou alarmes eletrônicos.

João aproveitou enquanto o velho conversava com alguns clientes e adentrou silenciosamente um corredor escuro, ao lado do balcão. Logo, estava dentro da mansão e ficou impressionado com o tamanho do lugar.

Um sátiro de mármore branco ocupava o salão principal, elevando-se até o terceiro andar da residência. A estátua estava disposta de tal modo que encarava quem quer que subisse pela escada espiralada com um sorriso diabólico e ameaçador. João seguiu até o último andar e logo achou o escritório do dono da casa.

Após conferir a existência do cofre e chegar à conclusão de que o trabalho era muito mais fácil que roubar doce de criança, começou a refazer os passos de volta à loja de antiquidades. Mas parou na metade do caminho, atraído por uma imagem que viu por uma porta entreaberta.

Ali, no meio de um salão repleto de objetos tão ou mais esquisitos do que os vendidos na loja, estava um medalhão esverdeado talhado no formato de uma cabeça de gato. João não conseguia entender, mas sentiu uma atração especial pelo objeto. Estava tão hipnotizado pela peça que não percebeu a aproximação de um senhor vestido como um lorde inglês.

“Quem é você? O que faz nos meus domínios?”, questionou o estranho homem.

João se virou, sobressaltado. O homem o observava com olhos maléficos e inquisidores. João sorriu com desenvoltura.

“Perdão, me perdi a procura do banheiro. Não vai acontecer novamente.”

Antes que o homem pudesse responder, João desceu as escadas. O homem o seguiu.

“Aonde pensa que vai? Volte aqui imediatamente!”, chamou ele várias vezes.

João não deu atenção e saiu pelo mesmo local por onde tinha entrado com passos apressados. Do outro lado da rua, Zé Maria o esperava agitado. “O que aconteceu? Ele te viu?”

“Não se preocupe. Não foi nada demais. Vamos embora daqui”, respondeu João apressadamente.
Ao olhar para trás, ele viu o estranho parado nas portas do estabelecimento. Os olhos fixos em João, que lhe deu as costas e partiu sem dar atenção ao estranho calafrio que percorreu sua espinha por um segundo.

Mais tarde, no apartamento de João, os dois assaltantes planejaram os últimos passos a serem dados no assalto. Apesar do encontro esquisito no casarão, João estava animado. Mas ainda com dúvidas a respeito da participação de Zé Maria.

“Tem certeza de que...”

“Quantas vezes vai me fazer a mesma pergunta?”, cortou Zé Maria irritado. “A idéia foi minha, eu te coloquei no serviço, claro que tenho certeza do que estou fazendo!”

“Mas você não precisa participar do assalto em si, se não quiser. Somos amigos, sabe que pode confiar em mim. Vou te dar a sua parte.”

“Não me faça favores. Vou te dar cobertura para ter certeza de que nada sairá errado. Estou preparado. Pode confiar.”

“Como assim?”

Zé Maria resmungou e retirou uma pistola automática que estava escondida na cintura, debaixo da camisa.

“Cobertura! Vou garantir que ninguém atrapalhe nosso serviço!”

“Você está ficando louco?”, perguntou João em um súbito acesso de fúria.

Ele arrancou a arma da mão do amigo com um golpe rápido.

“Sou ladrão, não assassino! Não trabalho com armas e nem com quem esteja disposto a usá-las! Se quiser levar esse projeto adiante é bom colocar isso dentro da tua cabeça vazia, entendeu?”

Zé Maria fez uma cara de poucos amigos, mas assentiu. “Tudo bem”, respondeu. “Mas ainda vou acompanhá-lo no assalto...”

“Faça o que achar melhor!”, rebateu João sem paciência.

Ele voltou-se para o mapa que tinha feito da casa, sem perceber o olhar de ressentimento do amigo ao pegar a arma de volta.

Tinha um trabalho a fazer. Os preparativos estavam prontos e o prognóstico era favorável. Ele sorriu com a perspectiva de colocar as mãos na fortuna que o aguardava no casarão desprotegido. Tudo a risco quase zero. Ele só não sabia ainda que aquela história terminaria em sangue...

A seguir: Os bandidos entram em ação! Mas as coisas não saem como o esperado e a morte espreita na escuridão! Tudo isso e muito mais no próximo capítulo da origem do Gatuno! Em uma semana!

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

A marca do Gatuno

1: A proposta

Meia-noite sobre a cidade de Ilumina, onde anjos e demônios se confundem.

O silêncio no quintal de um casarão misterioso na rua dos Barões do Cerrado é quebrado pelos disparos de uma arma de fogo. Três tiros e o som de uma vidraça sendo quebrada. João dos Santos atravessa a janela circular com uma expressão de dor e surpresa. Sangue escapa do peito em espirais escarlates. Ele cai três andares, de costas no chão. Ossos se partem com estalos nítidos e dolorosos. João cospe sangue.

Mesmo assim, um objeto redondo e frio permanece seguro em sua mão direita. Ele levanta o rosto, ainda em estado de choque, e observa o medalhão esverdeado que repousa entre os dedos. O medalhão com um rosto felino. Então as forças lhe abandonam e sua cabeça cai para trás. A morte se aproxima. Não era para ser dessa maneira, pensa João enquanto o mundo ao seu redor perde a nitidez pouco a pouco.

Este é João dos Santos em seus momentos finais na Terra. Enquanto as forças esvaem do corpo e o coração bate cada vez mais lentamente, sua mente retrocede no tempo e espaço em busca de respostas para o fim iminente.

No início, de forma selvagem e sem controle. Imagens desconexas de uma vida de dificuldades passam por sua cabeça. Uma vida sem muitos recursos, mas repleta de amigos e uma mãe carinhosa. Ele relembra os sorrisos de outrora. A infância no Rio de Janeiro. E a pedra motriz que o levou adiante a cada curva do destino: sua ambição e ousadia.

Também lembra da galera do mau e do mentor que o ensinou a roubar e aplicar golpes sem ter que recorrer à violência. Lembra dos primeiros sucessos como ladrão e das tentativas fracassadas que lhe renderam dores de cabeça com a lei. Lembra ainda da adolescência repleta de garotas e agitos bacanas. As longas noites de amor com mulheres fantásticas. Os jogos de futebol e as partidas de sinuca.

Mas, mais do que tudo, lembra das encrencas com um pessoal barra pesada. Das ameaças de morte e da mudança para Ilumina, em busca de um novo começo. Nada disso realmente importa. Sua mente se foca. E enfim lhe voltam os acontecimentos que o levaram àquela situação inescapável.

Dois dias antes. Bar Zona Proibida, no distrito dos Afogados. Um lugar freqüentado por bandidos, malandros e prostitutas desiludidas.

Um homem de roupas amorratadas, barba por fazer e olheiras profundas bebia uma garrafa de cachaça, sozinho em uma mesa nos fundos do bar. Seu nome era Zé Maria e ele era um amigo de infância de João. Um homem católico, trabalhador e que sempre procurou ser correto na maneira de agir. Se mudou para Ilumina ainda jovem, em busca de uma vida melhor que ainda o iludia.

“Zé Maria! Seu bastardinho! Como a vida tem te tratado, meu caro?”, perguntou João se aproximando da mesa.

O sorriso luminoso no rosto. Os cabelos rebeldes. As roupas da moda que usava. O jeito animado e cheio de vida. João era o retrato oposto de Zé Maria.

“João! Quanto tempo!”, cumprimentou Zé Maria com um sorriso exagerado. Mais formalidade do que alegria, na verdade. “É um prazer vê-lo novamente, cara! Só Deus sabe como senti sua falta!”

“Mesmo?”, perguntou João sentando-se na mesa. “Achei que não aprovava o modo como levo a vida...”

“Talvez. Mas sabe como é, o tempo tem um jeito esquisito de mudar a cabeça da gente...”

“Foi por isso que me ligou?”

“Sim. Tenho um trabalho em mente. Um trabalho que cairá como uma luva para alguém como você...”

“Zé, minha situação financeira não é das melhores, mas também não estou implorando serviço por aí. Você é um cara honesto, trabalhador. É meu amigo e eu não gostaria de estragar isso te levando para o meu mundo...”

“Olha, Jonhy, corta o papo furado, tá legal? Você sabe que eu não te pediria nada se não estivesse na pior. Quer dizer, aqui estou. Com três trabalhos para levar e uma infinidade de contas que mal dou conta de pagar. Vivo para servir e ser escorraçado enquanto os outros levam uma vida de luxos, sem se preocuparem com o amanhã. Cansei de migalhas, cara. E, se o trabalho que eu tenho em mente der certo, não terei que me preocupar com nada por muito tempo. É difícil entender isso?”

“Não. Nem um pouco. Só achei que devia te avisar do passo que está prestes a dar. Qual é o trabalho?”

Zé Maria sorriu novamente. Dessa vez, com mais sinceridade e até um pouco de malícia.

“Descobri o golpe perfeito. Uma casa, sem alarmes nem vigilância e com uma fortuna guardada em um cofre antigo, fácil de arrombar. Minha fonte me disse que ali pode ter, fácil, fácil, uns dois milhões de dólares. A solução para todos os nossos problemas. E, o que é melhor, o dono do lugar vai viajar no fim de semana, o que nos dá a chance de entrar no lugar e levar a grana sem que ninguém desconfie de nada. O que acha?”

João tomou um gole de cachaça, analisando a proposta. “Fácil demais. Qual a pegadinha?”

“Aí é que está a beleza da coisa. Não tem pegadinha! O dono do lugar é um ricaço excêntrico, com fama de bruxo. Os empregados têm medo dele. Acreditam que o cara tem poderes sobrenaturais. Ele vende antiguidades, entende? Bagulhos com supostas características mágicas. Um monte de bobagem, é claro. Mas que mantêm o criaredo em cheque.”

Particularmente, João não acreditava em fantasmas ou maldições. Deu um gole na cachaça e incentivou o amigo a continuar o relato: “Onde fica o lugar?”

“Na rua Barões do Cerrado. Um velho casarão, cheio de janelas. A loja de antiguidades fica no térreo. Os produtos são caros pra cacete. Só vai granfino ali.”

“Lugar chique. Quem é o seu informante?”

“Qual é? Acha que é algum tipo de armadilha? Somos amigos de infância, cara! O que eu teria a ganhar?”

“Você quer a minha ajuda?", perguntou João sem aguardar uma resposta. Estava tratando de negócios e não costumava brincar em serviço. Nem mesmo com velhos amigos. “Quem é o informante?”, insistiu.

“Um empregado do casarão”, respondeu Zé Maria a contragosto. “Toma umas e outra comigo de vez em quando. Me contou tudo outro dia, quando fui deixá-lo em casa. Estava podre de bêbado. E aí? Aceita trabalhar comigo?”

“Talvez. Vamos dar uma olhada no lugar primeiro.”

“Quando?”

“Amanhã de manhã. Mas, por enquanto, deixemos os negócios de lado. Me conte umas novidades, cara! Tem anos que a gente não se vê!”

Zé Maria riu e serviu-se de mais uma dose de cachaça. Os dois amigos ficaram horas no bar, relembrando velhas aventuras e tempos mais felizes. Nenhum deles seria capaz de prever a loucura que logo se apossaria de suas vidas...


A seguir: Planos para o grande roubo são traçados! Um amuleto misterioso chama a atenção de João! E um encontro inesperado com o dono da cobiçada fortuna pode por tudo a perder! Tudo isso no próximo episódio da origem de Gatuno! Não perca!

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Apresentação

Bem vindos todos aqueles que aqui entrarem!

O lançamento do blog ocorre oficialmente na sexta-feira, dia das bruxas. Uma data que achei propícia, dada a natureza do personagem principal. Antes de colocar a mão na massa, no entanto, considerei importante dar uma passada aqui para contar um pouco da idéia de criar esse blog em primeiro lugar.

E, para isso, tenho que voltar um bocado no tempo. Até meus dias de menino e a descoberta do mundo dos quadrinhos. Ou um canto mais específico daquele universo, onde se encontravam personagens como Homem-Aranha, Hulk e Batman. Alguma coisa na história dos heróis que abrilhantavam dezenas de revistas nas bancas me fisgou. A rica mitologia de cada um deles e os conflitos entre o bem e o mau me faziam vibrar como um torcedor de futebol. Empolgado com aquele novo mundo, fiz o que qualquer garoto de oito anos faria no meu lugar: criei minhas próprias histórias com os meus próprios garranchos. E assim surgiu Gatuno!

Não, é sério. O personagem que vai ilustrar as páginas desse blog me acompanha desde a minha infância. Está certo que, de lá para cá, ele sofreu uma mudança radical, além de ter passado mais de uma década esquecido em algum canto escuro da minha mente. Mas, dois anos atrás, ele retornou a ocupar meus pensamentos assim como a idéia de produzir uma história em quadrinhos que contasse suas aventuras.

Sim, é verdade. As histórias que postarei aqui foram construídas com a intenção de serem entregues a um artista, que daria vida e cor para o personagem em uma revista em quadrinhos. Só que, infelizmente, não consegui convencer nenhum amigo meu que entenda do riscado a desenhar os meus roteiros pelo simples prazer de desenhar. Também não ganho o suficiente para pagar alguém a fazer esse trabalho por mim. Ainda mais sem nenhuma garantia de que o projeto viria a se pagar depois.

As perspectivas não eram das melhores. Gatuno estava a um passo de retornar aos recantos sombrios da minha mente. Então me veio a idéia. Por que não publicar as aventuras dele de forma seriada em um blog? Algumas delas já estavam prontas mesmo. Era uma idéia boa. Boa demais para ser ignorada. E isso nos trouxe até esse momento.

Não pretendo explicar quem é o Gatuno nessa breve apresentação. Prefiro que os interessados descubram o personagem aos poucos a partir de sexta-feira. Peço apenas que se lembrem que a inspiração para as histórias postadas aqui vem do mundo dos quadrinhos de heróis. Contará com toda uma mitologia própria e personagens fantásticos. Embora os primeiros capítulos possam enganar os incautos.

Dito isso, vamos às regras do jogo. As postagens serão feitas semanalmente, durante o fim de semana. Pretendo estabelecer sábado como o dia para publicar novos capítulos. Cada história deve ter, em média, quatro ou cinco capítulos. A primeira será um pouco mais longa, com sete. Tenho aproximadamente cinco meses de histórias na gaveta e idéias suficientes para abastecer esse blog por um bom tempo.

Espero contar com o interesse de vocês para continuar a produção das aventuras desse personagem fantástico!

A brincadeira começa na sexta-feira! Até lá!