sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

O roubo do livro dos Segredos - 1

1: O Colecionador

“Onde estou?”, perguntou João ao abrir os olhos após um período de inconsciência impossível de ser definido.

Olhou para os lados. Parecia estar em um telhado elevado, em alguma parte de Ilumina. Se levantou e percebeu que estava no edifício mais alto que já havia visto. A cidade abaixo parecia um formigueiro de luzes, buzinas e barulho de trânsito no ar noturno. Imediatamente, chegou à conclusão que não tinha uma torre daquele tamanho na cidade onde morava. Então, ou tinha sido levado para outro centro urbano ou estava sonhando.

“Você estragou tudo novamente”, o repreendeu uma voz familiar.

João se virou. Atrás dele estava Bubastis, observando-o com olhos furiosos e descontentes. O gato siamês se aproximou.

“Tentou se livrar do amuleto e não deu atenção aos seus instintos! Você tem sorte de ainda estar respirando, seu grande idiota!”

“Onde estou?”, repetiu João.

“Em um estado intermediário. Logo, alguém deve te levar de volta à realidade e isso tudo irá parecer um sonho distante. Por isso, preste atenção no que lhe digo: Aceite a transformação, não lute contra ela! Só assim você poderá sobreviver ao que está por vir...”

“O que está por vir? Do que está falando, Bubastis? Por acaso corro algum perigo?”

O gato não respondeu. Ele olhava para os céus.

“Hora de voltar”, anunciou.

Um balde de água fria trouxe João de volta ao mundo dos vivos. Ele quase não percebeu a transição do mundo dos sonhos para a realidade. Mas a água gelada entrou por seus pulmões e fez com que tossisse como um animal. Então percebeu as mãos amarradas por trás de uma cadeira e se deu conta que não havia saídas fáceis daquela situação.

“Bem vindo de volta, meu caro João”, disse uma voz que tinha ouvido apenas uma vez antes, alguns dias atrás.

João colocou os pensamentos em ordem. Lembrou-se da luta que travou com um lobisomem, da derrota e do amuleto que lhe foi tomado. Lembrou-se do homem com a cara enfaixada que levou os problemas até ele. Zé Maria. Ele também fora capturado. Passos lentos, porém constantes, circulavam a cadeira de João. Uma mão levantou seu rosto.

“Por um breve momento pensei que meu amigo Cedric tinha feito mais do que amaciá-lo para mim...”, continuou o homem cuja aparência lembrava um lorde inglês.

“Onde está ele?”, perguntou João sem dar atenção à aura de ameaça que exalava do dono do casarão.

O homem de sorriso maligno se afastou. Ele carregava um cetro em uma das mãos e parecia considerar o que fazer com João e com o outro homem amarrado na cadeira do lado. João se virou e viu Zé Maria. Apesar do rosto enfaixado, ele pensou ver lágrimas escorrerem do rosto do colega, que mantinha a cabeça abaixada, resignado com seu destino.

“Temo que nosso caro detetive recebeu seu pagamento e partiu”, respondeu o homem. “Mas quem somos nós para culpá-lo? Ele cumpriu com suas obrigações de maneira satisfatória...”

O dono do casarão colocou a mão esquerda em um dos bolsos e retirou algo de dentro dele. João reconheceu imediatamente a peça que balançava no ar, a poucos metros da cadeira onde estava. O amuleto do Gatuno.

“Familiar?”, perguntou o homem com ar de triunfo.

“Pode ficar com a maldita peça, se é isso o que quer! Ela não me trouxe nada além de desgraça e horror! E, se pretende me matar, faça isso de uma vez! Estou cansado demais para ficar implorando pela vida!”

“Não!”, gritou Zé Maria se manifestando pela primeira vez desde que João acordou. “Por favor! Não me mate! Sou muito novo para morrer! Tenho a vida toda pela frente! Me deixe viver!”

O dono do casarão bateu com o cetro no rosto de Zé Maria. Um jato de sangue e dois dentes mancharam o chão e as roupas do homem com o rosto enfaixado.

“Silêncio, criatura! Tenha um mínimo de dignidade!”, vociferou o dono do casarão em um acesso de raiva. Então se virou para João e se recompôs. Nada em sua expressão denunciava a animosidade de um momento atrás “Não consigo entender o que alguém como você estava fazendo com um traste desses”, continuou com a voz calma e pausada. “Mas, acho que também não é do meu interesse, não é verdade? Não preciso entendê-los para contratar os seus serviços...”

“Como é que é?”, perguntou João, sem entender nada.

“Perdão, estou me adiantando. Antes de tudo, permita que me apresente. Meu nome é Alberto Phillips Williamson. Mas você e seu amigo podem me chamar de Colecionador, visto que meu hobby nos últimos séculos tem sido recolher peças de valores simbólicos, artísticos e até mesmo mágicos, como você pode atestar com o amuleto que me tomou emprestado por um breve período de tempo. Dito isso, receio que os dois tenham me dado um certo prejuízo durante a última visita que fizeram ao meu lar...”

“Do que está falando? O lobisomem te entregou de volta o amuleto e o dinheiro! Não ficamos com um centavo sequer!”

“Sim, é verdade. Assim como também é verdade que, para conseguir o amuleto, o senhor destruiu algumas relíquias da minha coleção, danificou armaduras antiguíssimas e provocou danos a uma das minhas estátuas preferidas. Meu desejo era torturar os dois até a morte. Mas receio que sejam mão-de-obra boa demais para ser desperdiçada de maneira tão leviana...”
“Então o que quer de nós?”

O Colecionador sorriu.

“Quero que roubem um livro para mim...”

A seguir: João e Zé Maria precisam acertar suas diferenças se quiserem sobreviver ao serviço que o Colecionador lhes passou! Mas, enquanto a dupla se mantem alerta para não levar uma faca nas costas, uma ameaça sobrenatural espreita nas sombras! Confira em uma semana!

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Como cães e gatos - 5

5: Confronto

Primeiro, Gatuno se curvou e sentiu os pêlos nas costas se eriçarem diante da ameaça. A vontade que tinha era de sair dali o quanto antes, encontrar um lugar seguro e escapar da monstruosidade que se avolumava à sua frente. Isso era o que seus instintos humanos lhe diziam. Mas o lado animal insistia em permanecer onde estava, desafiador. Era esse lado que interessava a Cedric, o lobisomem, que não parava de fazer provocações e o chamar para briga.

“Perdeu a coragem, bichano?”

“Pare de me chamar dessa maneira!”, rosnou Gatuno circulando o adversário em busca de pontos fracos.

“Me faça parar!”, respondeu Cedric saltando para cima do oponente.

Gatuno escapou do ataque com facilidade. O lobisomem, por sua vez, não conseguiu parar e destruiu parte da porta de acesso ao telhado com a investida. Gatuno aproveitou a oportunidade para usar as garras e rasgar as costas do inimigo. Cedric urrou de dor e tentou contra-atacar, sem sucesso. Gatuno já estava longe dali, em cima de uma chaminé, com as garras sujas de sangue.

“Primeiro golpe”, provocou Gatuno dessa vez.

“Golpe de sorte! Não passou disso!”

“Perdendo a coragem, lobinho?”

Cedric estava se divertindo. Era mais velho e mais experiente que o inimigo. Não cairia em nenhuma armadilha construídas com palavras. Esse truque era dele e sabia aplicá-lo em todas as condições possíveis e imagináveis. Resolveu fazer o jogo de Gatuno. Fez uma cara de raiva convincente e fingiu que os ferimentos eram mais graves do que eram. Não tinham passado de arranhões, mas Cedric agia como se tivesse sido trespassado por uma espada.

“Pode sorrir agora...”, continuou Cedric. “Mas duvido que consiga fazer isso novamente!”

O lobisomem saltou outra vez. Como antes, Gatuno fugiu com um salto maior e mais veloz que o do lobo. Era fácil demais. Apesar de mais forte, o inimigo era lento. Não tinha a mesma agilidade nem o mesmo jogo de cintura. Bastava manter distância dos dentes da criatura para ficar seguro. E aproveitar as aberturas fornecidas pelos ataques desajeitados para contra-atacar.

Uma situação como a que se abria perante seus olhos. O lobisomem arrebentou um emaranhado de antenas e não viu onde o inimigo tinha parado. Os instintos de Gatuno lhe diziam para se manter onde estava. Mas o sucesso do primeiro ataque e a oportunidade de esfregar uma vitória na cara do detetive convencido falaram mais alto ao seu lado humano. Gatuno saltou para as costas da criatura, pronto para atacá-lo com as garras novamente.

No entanto, o lobisomem estava preparado dessa vez. Ele se virou rapidamente assim que sentiu o movimento do inimigo e acertou Gatuno em pleno ar com um golpe devastador. Um golpe tão forte que lançou Gatuno aos céus e fez com que batesse na lateral de outro prédio. O som de uma costela se partindo ressoou na mente de João, que não pode dar atenção à dor que lhe atacava o abdômen pois percebeu que estava em queda livre.

Instintivamente, o lado animal assumiu o controle e fez com que caísse de pé e sem maiores ferimentos na calçada. Outra porrada dessas e eu já era, pensou João analisando os ferimentos.

O som de algo pesado batendo contra o chão o trouxe de volta à realidade. O lobisomem aterrissou do outro lado da rua.

“Pronto pra outra, bichano?”

Gatuno não respondeu. Entendeu que tinha caído num truque e não gostava disso. Se quisesse vencer o adversário, teria que pensar mais rápido que ele. Mas Cedric não estava disposto a lhe dar tempo para pensar. O lobisomem arrancou um poste de luz e o usou para tentar acertar o inimigo. Gatuno conseguiu se desviar do golpe, que rachou a calçada no meio.

“Mas que diabos?”, perguntou um traficante em um beco próximo.

Ao que parecia, a luta das duas criaturas estava atraindo atenção inesperada. O traficante assustado sacou uma arma e atirou contra o lobisomem, que usou o poste para se proteger dos tiros. Em seguida, o monstro rosnou para o humano, que largou a arma e fugiu beco adentro gritando de medo.

“Onde estávamos?”, perguntou Cedric, se voltando para Gatuno.

Gatuno não lhe dava atenção. Ele viu o revólver caído no chão e pensou que talvez, apenas talvez, tivesse uma chance contra o monstro que o atacava. João não gostava de armas. Mas a situação atual não lhe dava muitas opções. Ele agarrou o revólver e apontou para o lobisomem, que parou no meio da rua, com uma expressão surpresa.

“É brincadeira?”

Gatuno puxou o gatilho. Uma bala acertou o lobisomem no ombro esquerdo e ele largou o poste de luz que carregava como um tacape. O monstro olhou para o sangue derramado e de volta para Gatuno com olhos suplicantes.

“Não...”

“Tarde demais para implorar, criatura”, respondeu Gatuno e atirou novamente.

O segundo tiro acertou o lobisomem no ombro direito. Gatuno apertou o gatilho mais três vezes. Ele acertou os joelhos e o abdômen do inimigo. Só queria incapacitar o homem-lobo. Imaginou que, se acertasse as balas em qualquer lugar que não a cabeça, os músculos desenvolvidos da criatura evitariam ferimentos mais graves. Por isso, se surpreendeu quando o lobisomem caiu de cara no chão, aparentemente sem vida.

“Cedric?”, perguntou Gatuno baixando a arma.

O lobisomem não respondeu. Ele não se mexia nem parecia respirar.

“Cedric!”, chamou Gatuno largando a arma e correndo na direção do inimigo.

Não tinha a intenção de matar. Não queria se tornar um assassino. Abominava a violência, na verdade. Gatuno se ajoelhou ao lado do corpo do monstro derrubado.

“Idiota!”, disse o lobisomem agarrando o braço de Gatuno. “Nunca leu histórias de lobisomens? Só balas de prata nos ferem!”

Outra armadilha! Tinha caído em mais uma maldita armadilha!

Gatuno rosnou e tentou se livrar do abraço mortal com chutes e arranhões. Mas o inimigo apenas ria. O lobisomem deu um tapa humilhante no rosto de Gatuno. A força fez com que a visão de João se turvasse por um segundo.

“Não devia ter me provocado, garoto”, falou o lobisomem com as presas próxima do rosto inimigo. “Teria sido mais fácil se não tivesse me provocado...”

Gatuno podia sentir o bafo asqueroso da criatura. Os olhos do lobisomem transpareciam uma selvageria animal. Não havia quase nada de humano naquele olhar, que parecia considerar se deveria devorá-lo ou não. Gatuno não esperou que o homem-lobo concluísse o pensamento. Usou as garras uma vez mais para tentar um golpe mais drástico. Atacou o pescoço do lobisomem, que afastou o rosto. Mas não o largou. Os olhos do monstro encararam Gatuno com ódio. Ele rosnou.

Em seguida, desferiu vários socos contra o homem-gato. Acertou a barriga, as costelas, os braços e o rosto. Deu vários socos no rosto. Gatuno tentava reagir, mas tinha um braço preso e faltava-lhe forças. Enfim, o lobisomem o levantou sobre a cabeça e o jogou contra uma parede. Dessa vez, Gatuno não caiu de pé, mas sim de cara no chão. E assim permaneceu, visto que a consciência tinha abandonado seu corpo.

Cedric retornou à forma humana enquanto atravessava a rua. Colocou a mão em um dos bolsos e retirou um cigarro, o acendeu e tragou profundamente. Não escutava uma sirene sequer no ar, mas era óbvio que a briguinha dos dois tinha atraído a atenção dos moradores da vizinhança. No entanto, ali era o distrito dos Afogados, um local temido até mesmo pelas autoridades locais. E quem iria acreditar na história de uma briga de monstros em plena rua. O detetive sorriu e se agachou.

Calmamente, retirou o amuleto do desmaiado Gatuno. Imediatamente, o corpo passou por uma transformação e voltou a ser João dos Santos. Cedric percebeu que os ferimentos tinham desaparecido após a mudança. Pensou no trabalho que o jovem lhe dera e no potencial que tinha. Então suspirou e se levantou novamente.

“Hora de entregá-lo aos leões, meu caro...”

Fim do episódio

A seguir: Gatuno sofreu sua primeira derrota e chegou a hora de pagar o preço por seus erros! Esteja aqui em uma semana para testemunhar o encontro de João com o misterioso Colecionador no início de uma nova aventura intitulada "O roubo do livro dos Segredos"!

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Como cães e gatos - 4

4: Fuga

“E o que acontece depois que eu te entregar o amuleto?”, perguntou João, furioso. “Você mata a gente, é isso?”

“O destino de vocês não está em minhas mãos. Tenho ordens de entregá-los vivos ao meu cliente. O que ele fará com vocês não é problema meu...”

“Você não me disse nada disso antes”, reclamou Zé Maria. “Foi esse cretino quem roubou teu cliente! Não tenho nada a ver com isso! Matem ele, mas me deixem ir embora!”

“Desculpe, cara, o acordo é os dois serem entregues de presente. E não acho que meu entregador pretenda matá-los. Não faz o estilo dele. Agora, voltem ao trabalho! Ainda tem muito dinheiro para vocês recolherem...”

João se levantou, desafiador. Cedric, que estava encostado na parede, deu um passo à frente e cerrou os punhos, em uma posição defensiva. Não falou nada. Apenas olhou para o bandido, que já estava com a cara meio inchada pelas duas vezes em que o derrubou, e sorriu. João sabia que não tinha chances contra aquele homem em uma luta justa.

“Dane-se tudo isso”, rosnou João entre os dentes e correu para o próprio quarto.

“Pare!”, gritou o detetive se colocando em seu encalço.

Cedric era rápido. Mas João deu tudo de si naquela pequena corrida. Ele não pretendia parar. Ao invés disso, saltou em um só movimento contra a janela. Vidros voaram na escuridão e alguns pedaços ficaram encravados na jaqueta de couro de João. Não deu tempo para pensar em nada. Um jorro de adrenalina percorria seu corpo. Estava em pleno ar e em queda livre.

O telhado vizinho ficava a uma distância de três metros de distância e quatro de altura. O impulso de João tinha sido suficiente para que alcançasse o outro lado sem se espatifar em uma parede. Mas nunca tinha feito nada igual antes. Ao menos, não em forma humana. Ao aterrissar do outro lado, ouviu um estalo seco e sentiu a perna esquerda ceder. Um relâmpago percorreu seus nervos e João gritou de dor. Tinha quebrado o pé.

“Essa foi uma das coisas mais estúpidas que já vi...”, comentou Cedric observando João pela janela quebrada. “Achou que ia conseguir fugir dessa maneira?”

João levantou o dedo do meio para o detetive. Cedric não deu atenção ao gesto.

“Espere um minuto. Preciso algemar seu colega imprestável antes de te pegar aí. Não tenha pressa para tentar fugir, ok?”

O detetive voltou para dentro do apartamento. João olhou em volta e viu o amuleto encostado na parede. Exatamente no lugar onde tinha caído mais cedo. Tentou se levantar e sentiu um fogo insuportável a subir pela perna machucada. Caiu novamente. Seria preciso se arrastar. Mas a que distância estaria o amuleto? Cinco, sete metros? Daria tempo de chegar até ele antes que o detetive viesse em seu encalço? Afastou da cabeça as dúvidas e começou a se arrastar.

“Ainda tentando fugir?”, perguntou o detetive de volta à janela do apartamento. “Você me diverte! Aguarde um segundo...”

João continuou a se arrastar. Estava mais perto do amuleto. Não podia desistir naquele momento. Ouviu o som de passos apressados e então um silêncio breve, que precedeu uma aterrissagem suave no telhado onde se encontrava. Muito mais suave do que o tombo do bandido. João olhou para trás. O detetive se colocava de pé, com a postura do perseguidor implacável que era. O amuleto ainda estava distante. João redobrou os esforços para alcançá-lo.

“Pode parar de se arrastar quando quiser, camarada”, comentou o detetive enquanto batia os poucos cacos de vidro que se prenderam no sobretudo durante o salto. “A brincadeira acabou. Se renda enquanto ainda lhe resta alguma dignidade, certo?”

João não respondeu. Estava a menos de um metro do amuleto. O detetive aparentemente não tinha visto a peça. Talvez nem soubesse de seus poderes. João tinha uma chance e se agarrava a ela com toda força.

“Tenho que admitir, tu tem colhões, meu caro. Pena que eles não vão te adiantar de nada agora. Lamento que tenha que ser dessa forma, amigo, de verdade. Mas sou um homem de palavra. Espero que entenda...”

As pontas dos dedos de João tocaram o amuleto. Então mãos mais fortes que a do bandido se fecharam sobre a gola da jaqueta dele e o levantaram como um boneco.

“Estou falando contigo, cara. Que foi? O gato comeu sua língua?”

“Escolha interessante de palavras”, respondeu João rindo pela primeira vez.

O detetive não entendeu. João ficava mais pesado a cada momento que passava e parecia ficar mais encorpado. Cedric o virou e ficou surpreso com o que viu. Garras brilharam sob a luz do luar e acertaram o peito do homem de sobretudo, que largou a coisa que momentos antes era apenas um bandido pé de chinelo.

João mudava sob o olhar do detetive. Pêlos alaranjados cresciam pelos braços e o rosto se alargava, adquirindo características felinas. Os olhos assumiam um aspecto selvagem e ameaçador. Gatuno caminhava sobre a face da Terra uma vez mais.

“O que foi?”, repetiu Gatuno com um sorriso malicioso. “O gato comeu sua língua?”

O detetive encarou a criatura com descrença e então sorriu enigmaticamente. Gatuno esperava que o humano corresse. Ao invés disso, Cedric retirou o sobretudo em desafio à criatura inumana.

“O que está fazendo?”, rosnou Gatuno. “Não pode estar pensando seriamente em lutar comigo, está?”

Cedric jogou a camisa que vestia sobre o sobretudo descartado. Tudo sem tirar os olhos do oponente.

“Bichano...”, provocou o detetive. “Você não faz idéia com quem se meteu dessa vez!”

Gatuno rosnou e se preparou para atacar. Mas hesitou um momento. Alguma coisa acontecia com o homem parado diante dele. Poderia ser apenas um jogo de sombras, mas a visão aguçada de Gatuno era melhor do que a dos humanos. Ele entendeu que aquilo que via não era fruto de sua imaginação.

O homem diante dele realmente aumentava de tamanho a cada segundo e pêlos negros saltavam da pele. Os músculos do detetive se dilatara na medida que a transformação ganhava velocidade. O rosto se afunilava e dentes brancos ficavam mais largos e pontudos. O nariz deu lugar a um focinho. Orelhas pontudas se levantaram na escuridão e olhos ferozes, negros como a noite, encaravam o inimigo com escárnio. O lobisomem se pôs em posição de ataque e soltou um longo uivo de satisfação.

Dessa vez foi Gatuno quem deu um passo para trás, surpreso. O lobisomem tinha duas vezes o seu tamanho.

“Ainda quer brincar?”, perguntou a voz cavernosa do homem-lobo.

A seguir: Gatuno enfrenta seu primeiro desafio de verdade! Mas terá ele chances contra um inimigo mais experiente e mais forte? Confira em uma semana!

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Como cães e gatos - 3

3: Visitantes inesperados

João estava desanimado quando entrou no bar Zona Proibida. O ambiente parecia refletir seu estado emocional. Poucos clientes, pouca conversa e uma televisão ligada no mudo. Olhou em volta e não viu nenhum rosto conhecido. Lembrou-se que era segunda-feira e suspirou.

Sentou-se no balcão.

“Uma cerveja, por favor”, pediu.

O barman virou-se, notando a presença do novo freguês pela primeira vez e impressionou-se ao ver quem era.

“João? É você mesmo? Que cara de enterro é essa, cara?”

“Não estou na minha melhor forma, Cachola”, respondeu João levantando a cabeça. “Dia parado?”

“Normal para uma segunda-feira”, respondeu o barman lhe entregando a caneca pedida. “Passou um cara mais cedo atrás de você...”

“Policial?”

“Não. Disse que era da família. Um sujeito engravatado com ar de janota.”

“Daniel”, assentiu João. “Meu primo”, explicou. “Ele não chegou a dizer o que queria comigo, chegou?”

“Não. Só pediu para avisar que está te procurando. Sabe o que pode ser?”

“Nem idéia”, respondeu João.

E não sabia mesmo. Fazia tempo que não conversava com o primo, que tinha acabado de ser contratado como advogado após concluir o curso de Direito. Daniel tinha conhecimento das atividades extracurriculares de João. Mas o recriminava menos que a tia, apesar de não apoiá-lo. Ainda assim, era um dos seus melhores amigos.

“Você não apareceu por aqui ontem. Os garotos estranharam. Sabem que não é de perder um jogo marcado”, comentou o barman mudando de assunto.

“O Círculo Marginal sentiu minha falta? Ou falta do meu dinheiro? Se passarem por aqui, diga que não pude ir porque passei o fim de semana resolvendo uns problemas...”

“Sei...”, continuou o barman. “Quer conversar sobre isso?”

“Sei lá”, respondeu João dando um gole longo de cerveja. “Acho que eu não saberia nem por onde começar, Cachola...”

“Mulher?”, insistiu o barman.

João pensou sobre a pergunta e riu pela primeira vez desde sábado.

“É, acho que posso dizer que tem mulher no meio. E mais de uma!”, respondeu João pensando em Anita, Bast e Sekhmet.

O barman quis saber da história, mas João não tinha como lhe contar a verdade. Então fez uma piada e mudou de assunto. Conversou com Cachola por mais uma hora e meia. Esperou para ver se algum velho conhecido aparecia para tomar uns tragos, só que não apareceu ninguém. João se convenceu que beber não iria ajudar em nada, pagou a conta e decidiu voltar para casa.

A noite caía sobre as ruas de Ilumina enquanto luzes artificiais tentavam afastar a escuridão. No distrito dos Afogados, as trevas predominavam mesmo durante o dia. Diversos postes tinham as lâmpadas quebradas e malandros vendiam drogas para jovens em carros esportes. Pichações se espalhavam pelas paredes e sujeitos com caras de poucos amigos, revólveres visíveis na cintura, andavam pela rua sem preocupações. Não havia um policial à vista por mais de dez quarteirões.

A vizinhança estava em um estado de deterioração desde que João se mudou para lá. Ninguém o incomodava porque todos sabiam que não passava de um ladrão pé de chinelo. Um bandido menor. João se perguntou o que seus vizinhos pensariam se soubessem da fortuna que tinha escondida no apartamento. Provavelmente lhe cortariam a garganta ou dariam um tiro na cara.

Pensamentos animadores. Você realmente está com a bola toda, meu caro, considerou João enquanto tirava as chaves do apartamento do bolso.

Estava distraído e melancólico, com a guarda baixa. Por isso não notou a dupla que se escondia nas escadas até ter acabado de destrancar a fechadura. Só então percebeu um movimento e se virou.

Tarde demais. Um murro o acertou no queixo e fez com que caísse dentro do próprio apartamento.

“Eu não me levantaria se fosse você”, avisou o homem que o acertou adentrando a residência.

João se virou. Um sujeito de sobretudo e aparência selvagem o encarava. Não parecia armado. João decidiu arriscar a sorte. Saltou sobre o inimigo. Dois socos o convenceram de que acabara de cometer um erro. O primeiro o acertou na barriga. O segundo, no rosto. E o bandido foi lançado aos ares com a força do inimigo, caindo sobre a mesa onde estava as pilhas de dinheiro roubadas no sábado. Notas de todas as cores e nacionalidades se espalharam pelo ar.

“Agora olhe a bagunça que você fez...”, reclamou o desconhecido. “Espalhou todo dinheiro do meu cliente!”

João ainda estava meio grogue por causa das pancadas que levara. Não tinha forças para tentar outro ataque. Então observou enquanto o estranho puxava outro homem, que permanecia escondido na escuridão do corredor, e o jogou ao seu lado. O sujeito gemeu levemente ao cair e, apesar das bandagens impedirem qualquer tipo de reconhecimento, o som despertou a memória do bandido.

“Zé Maria?”, perguntou João olhando perplexo para o amigo que o traiu.

O homem por trás das bandagens sorriu com pura maldade.

“Eu trouxe ele aqui...”, revelou Zé Maria com ar de triunfo.

“Vocês dois, arrumem essa bagunça”, ordenou o homem de sobretudo fechando a porta do apartamento. “E façam isso em silêncio. Não queremos chamar a atenção dos vizinhos, queremos?”

“Quem é você? O que quer de mim?”, exigiu João sem se mover.

“Meu nome é Cedric Lobato. Sou detetive particular. Isso é tudo que vocês precisam saber sobre mim, acreditem. E o que eu quero é acabar com esse serviço o quanto antes para retomar a minha vida. Para isso, é melhor vocês recolherem esse dinheiro o mais rápido possível sem gastar meu tempo com perguntas inúteis. Portanto, ao trabalho!”

“Te contrataram por conta do roubo de sábado então”, concluiu João. “É só o dinheiro que querem?”

O homem de sobretudo acendia um cigarro.

“Não...”, admitiu.

“O que mais seu cliente pediu para levar de volta para ele?”

“Você parece um cara esperto. Mais esperto do que seu colega com cara de múmia, pelo menos. Tenho certeza de que pode descobrir o que meu cliente quer sozinho...”

“O amuleto?”, perguntou João.

“O amuleto!”, respondeu o detetive.

E nossas vidas, pensou João sem esperança.

A seguir: A situação se complica e João toma medidas desesperadas! Contudo, o detetive Cedric revela ter mais cartas guardadas na manga do que se poderia imaginar!

domingo, 4 de janeiro de 2009

Como cães e gatos - 2

2: O homem sem face

“Olha, mãe, uma múmia!”, apontou um garotinho com menos de dez anos.

“Pare com isso, menino! Já te disse que é feio apontar para os outros!”, repreendeu a mãe da criança. “Desculpe, senhor”, continuou ela em uma voz sem graça para o estranho na fila do terminal de ônibus. “Crianças! Não medem as palavras...”

“Tudo bem”, resmungou o homem, de rosto e mãos enfaixadas. “Apenas afaste-o de mim, ok?”

A mulher olhou para o homem com indignação, mas ele não lhe deu mais atenção. Apenas se virou para o lado e olhou os itinerários de viagem. Precisava sair da cidade o quanto antes. Não se atrevia a ficar em Ilumina nem um segundo a mais. Não depois de tudo que aconteceu. Dos horrores que viveu.

Os ferimentos nas mãos, no rosto e no peito diziam para Zé Maria que não tinha ficado louco. Que o amigo que matou tinha voltado da terra dos pés juntos como uma criatura saída do inferno. As palavras de Gatuno ainda reverberavam em sua mente como um alerta ameaçador. Não me deixe vê-lo nas minhas ruas novamente, verme, ele havia dito. Ou não ficarei contente apenas em arranhá-lo um pouco...

Os nervos de Zé Maria estavam à flor da pele. Ele olhava sobre os ombros de minuto a minuto. Como se esperasse ver o homem com cabeça de tigre sair de um canto escuro a qualquer momento. Tudo que queria era pegar o primeiro ônibus para fora da cidade. Depois pensaria no que fazer com o restante da vida.

A mulher no balcão tinha um olhar entediado e cansado.

“Para onde?”, perguntou ela.

Zé Maria abriu a boca para responder quando uma mão caiu sobre seu ombro.

“AAAAHHHH!!!”, gritou ele esperando ser despedaçado pelo monstro de seus pesadelos.

Mas, ao invés de um homem com cara de tigre, um sujeito de aparência selvagem o segurava pelo ombro com força. Ele tinha cabelos negros e usava um sobretudo.

“Acalme-se, Jorge! Quer assustar os outros na fila?”, perguntou o estranho amigavelmente.

Zé Maria não sabia o que responder. Não conhecia o homem e não fazia idéia do que estava falando.

Um policial militar se aproximou dos dois.

“Algum problema aí?”, perguntou o oficial com a mão nervosa sobre o revólver.

“Problema nenhum, seu guarda. Meu nome é Cedric Lobato. Sou detetive particular e fui contratado para encontrar meu amigo Jorge aqui, que fugiu do manicômio na semana passada...”

“È mentira! Nunca vi esse homem na vida antes! Acredite em mim, seu guarda! Acho que esse homem quer me matar!”

A pressão no braço de Zé Maria aumentou consideravelmente. Ele gemeu de dor.

“Desculpe, seu guarda”, disse o homem de sobretudo com um sorriso amigável. “Nosso caro Jorge perde a noção da realidade quando se esquece de tomar seu remédio! Aqui!”, continuou mostrando um pote alaranjado cheio de comprimidos para o policial. “Ele só precisa tomar dois desses para ficar calmo com uma ovelha...”

“Agora, espere um minuto, senhor”, interrompeu o guarda prestes a tirar o revólver do coldre. “Como vou saber se você está falando a verdade?”

O homem de sobretudo lançou um olhar furioso para Zé Maria, que sentiu um calafrio percorrer pela espinha.

“Você vai se comportar se eu te soltar, Jorge?”, falou com uma voz amigável. Os olhos frios a cravejarem Zé Maria com mensagens subliminares. “Não vai tentar fugir, vai? Eu só preciso de um minuto para esclarecer a situação com nosso amigo da polícia, ok?”, continuou como se falasse com uma criança.

Zé Maria assentiu com a cabeça, sem dizer uma palavra, preenchido pelo medo. Os dedos do homem soltaram seu ombro dolorido. Ele se virou para o policial e Zé Maria percebeu que a frieza que guardava no olhar tinha mudado subitamente.

“Minhas credenciais...”, disse o homem de sobretudo entregando a carteira de detetive para o policial juntamente com um cartão onde estavam o nome de uma mulher e um telefone. “E esse é o nome da minha cliente. A esposa de Jorge. Se quiser, pode ligar para ela e confirmar toda minha história...”

Zé Maria olhou para os lados em busca de uma saída. Pensava em correr. Mas a mão do estranho o agarrou pelo colarinho da camisa enquanto o policial analisava os documentos. Estava preso.

“Isso não vai ser necessário”, respondeu o guarda tirando a mão do revólver e colocando-a no cinto, mais relaxado. “Ele não é perigoso, é?”

“Ele não machucaria uma mosca, seu guarda”, garantiu o homem de sobretudo com o sorriso mais simpático do mundo.

“Tudo bem então. Desculpe pelo incômodo.”

“Incômodo nenhum, seu guarda. Bom trabalho para você!”

“Para você também”, concluiu o policial dando as costas para a dupla. Zé Maria não parava de balançar a cabeça negativamente.

O homem de sobretudo se virou para o homem enfaixado que segurava firmemente. Ainda sorria, mas seus olhos readquiriram a aparência ameaçadora.

“Isso não foi muito esperto da sua parte, colega”, sussurrou para Zé Maria enquanto o retirava do meio da multidão, que tinha parado para assistir ao espetáculo. “Eu sei quem você é e onde esteve no último sábado!”

Zé Maria quase tropeçou, mas o homem de sobretudo não deixou. Ele o arrastava para fora da Rodoviária.

“Pelo estado em que seu amigo o deixou, eu diria que os negócios não saíram exatamente como o planejado, não é mesmo?”

Zé Maria balançou a cabeça negativamente. O homem de sobretudo o levava rumo um Maverick reformado com rodas grossas e pesadas. O carro tinha uma aparência imponente. Como se fosse capaz de atravessar uma parede de tijolos sem sequer arranhar a pintura.

“Entre”, ordenou o estranho.

Não havia opção. Zé Maria obedeceu e assistiu enquanto o estranho deu a volta no veículo e sentou no banco do motorista. Zé Maria tremia mais do que vara verde.

“C-co... como me encontrou?”, teve coragem de perguntar enfim.

“Está brincando?”, respondeu o homem. “Você não toma um banho desde sábado e ainda quer saber como te achei? Daria para sentir teu cheiro da China, colega! Já o teu amigo...”

“Que amigo?”

“O cara que fez isso na tua cara! Esse vai dar trabalho para encontrar, já que o cheiro dele parece mais a lembrança de um odor. A não ser, é claro, que você esteja disposto a me dar uma mãozinha...”

Então o medo de Zé Maria desapareceu por completo. Ele encarou o homem de sobretudo e reconheceu nele alguém tão ou mais forte que a criatura saída do pesadelo que o desfigurou. Não teve sucesso em matar João dos Santos quando teve a chance. Mas, talvez, o homem de sobretudo pudesse sair vitorioso da tarefa na qual ele tinha falhado.

Nota do autor: Após um breve recesso de fim de ano, estamos de volta para mais um capítulo do Gatuno! Espero que vocês curtam as novas aventuras assim como os novos personagens que passarão a surgir a partir de agora! Desejo a todos que aqui passarem um feliz ano novo! E fiquem agora com a prévia do próximo capítulo: João vai afogar as mágoas em um bar sem desconfiar que está sendo procurado! E Zé Maria mostra que está mais do que disposto a ajudar o detetive Cedric a colocar as mãos nos pescoços do Gatuno! Tudo isso e mais na próxima sexta-feira (para acertar os ponteiros)!!