quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

O roubo do livro dos Segredos - 4

4: Sekhmet

Em algum lugar distante, se levantavam os gritos e o cheiro de carne queimada. Mas não onde João se encontrava. Não na mata virgem de algum reino distante além das fronteiras da realidade. Um lugar que ele conjurou com o poder da própria mente em busca de uma salvação fugidia. Ele estava na selva. E podia sentir os olhos da fera que o espreitava.

“Quem está aí?”, exigiu em tom de voz levemente desafiador.

Um riso irônico partiu da vegetação. Um riso feminino.

“Pequeno humano”, respondeu uma voz poderosa e antiga. “Você me acordou! É um erro fazer isso sem conhecer as conseqüências de tal ato! Está pronto para pagar o preço da sua audácia?”

“Suas ameaças não me assustam, criatura. Eu já morri uma vez e não temo mais a morte. Apareça de onde estiver e me confronte. Eu a desafio!”

“Bast estava certa”, respondeu a poderosa voz no meio da mata. Então, sua portadora deixou a escuridão esverdeada para se colocar diante de João em toda sua majestade. Uma mulher felina que vestia armadura leve e armas perfurantes penduradas em bainhas. Uma mulher que João havia encontrado uma única vez. “Você parece digno do poder...”

“Sekhmet!”, reconheceu João. “Onde estou? O que significa isso?”

“Você é nosso avatar na Terra, humano. Meu e de Bast. Até o momento, você nos negou e tentou nos abandonar. O que mudou?”

“Seu mundo colidiu com o meu! Desde que as encontrei, tenho sido perseguido, torturado e usado como peão de homens com poderes que desafiam minha compreensão! Não sei porque isso aconteceu, mas entendo que, se quiser algum dia levar uma vida normal novamente, terei que jogar pelas suas regras! Então, aqui estou. Eu aceito o fardo de me tornar Gatuno uma vez mais.”

A deusa sorriu. Parecia estar se divertindo com a situação. Ela não era mais a gigante com quem João se encontrou uma vez. Tinha diminuído de tamanho e agora media apenas 3,5 metros de altura. João pensou por um segundo qual seria o motivo da mudança, mas então Sekhmet falou novamente.

“Você tentou tapear minha irmã uma vez. Ela é misericordiosa. Eu não tenho tais escrúpulos. Você entende?”

João assentiu. Sabia que estava negociando com uma divindade e que a dívida seria cobrada mais cedo ou mais tarde.

“Até o momento, você tem usado os poderes que lhe concedemos em benefício próprio. Sem consciência do presente real que lhe demos. Do verdadeiro potencial do Gatuno. E, como posso ver, ainda demorará um pouco para que esse potencial se manifeste dentro de você. É preciso um período de adaptação. Ou gestação, se preferir. Você ainda é uma criança. Mas vejo que posso moldá-lo em um guerreiro perfeito, se assim o desejar.

“Peço apenas que entenda o significado do caminho que está prestes a escolher. Se optar a mim ao invés de minha irmã, seus inimigos temerão o seu nome. Todo mal que presenciar poderá ser punido de maneira apropriada. Os animais e elementos lhe darão seu apoio. E exércitos o seguirão nas batalhas vindouras”, Sekhmet fez uma pausa. Séria.

“E sangue será derramado em meu nome. Em quantidades que você não pode sequer imaginar ou terá poder para controlar. A loucura e embriaguez será o ponto final de sua jornada. Esse é o destino que prevejo para você. Sabendo de tudo isso, ainda deseja seguir o caminho que lhe ofereço?”

João hesitou, surpreso com a franqueza da divindade e assustado com os maus agouros da decisão que estava prestes a fazer. Pensou em desistir da barganha por um momento. Mas, se fizesse isso, estaria condenado a uma morte sofrida e também condenaria Zé Maria, a quem não guardava mais nenhuma simpatia e que, mesmo assim, não gostaria de deixar morrer. Não queria mortes na consciência. E mortes eram o que Sekhmet lhe prometia. Em um futuro sombrio e distante, mas ainda possível. Pensou em tudo isso e balançou a cabeça. Não tinha opções. Não de verdade.

“Eu aceito”, respondeu enfim. “Serei o avatar de vocês novamente!”

“Meu avatar, João dos Santos”, corrigiu Sekhmet com um sorriso maligno. “Meu avatar. Não se esqueça disso.”

A divindade fez um gesto com as mãos e a alma de João foi lançada no vazio entre as realidades. Ele caía de volta para o próprio corpo, como na primeira vez em que morreu, com as palavras de Sekhmet a segui-lo por todo o caminho. A voz dela e algo mais. Algo muito semelhante a uma risada histérica e malévola.

“AAAAHHHHHHH”, gritava João dos Santos nas catacumbas da mansão do Corvo Negro.

O mago ria sem parar. João tinha voltado à realidade, onde o velho lhe queimava com um ferro em brasa. Ele se perguntou se a risada que escutou quando caía não seria a dele. Mas não fazia mais diferença. A dor era algo distante. Algo quente e poderoso pulsava em seu peito. O Corvo Negro se afastou.

“Mas o que é isso?”, questionou o mago.

“Isso, velho, é a sua perdição!”, respondeu João ao sentir as forças de Gatuno tomarem seu corpo.

Os músculos novamente se expandiam, um pêlo alaranjado e vistoso brotava de sua pele, agora acompanhado de listras escuras. Garras tomavam conta das mãos. E seu rosto voltava a adquirir um aspecto animalesco. O rosto de um tigre feroz e furioso. Ele rugiu com imponência enquanto se livrava dos grilhões que restringiam seus movimentos e se pôs de pé uma vez mais. Gatuno estava de volta!

“Não pode ser”, balbuciou o Corvo Negro. “Você é uma cria dos velhos deuses! Você não devia existir! Isso só pode significar que... o selo foi quebrado! A velha magia está de volta!”

A fera que momentos antes ocupava o corpo de João dos Santos levantou o rosto na direção do mago e sorriu. Seus olhos cintilavam sob a luz do fogo.

“Hora de pagar os pecados, meu velho...”

Fim do episódio

A seguir: Gatuno confronta o Corvo Negro, que precisará recorrer a todos os truques que tem na manga para sobreviver! E ainda: Zé Maria se vê novamente diante da fera que dilacerou seu rosto! Conseguirá ele sobreviver a um segundo encontro? Descubra em uma semana na história intitulada O retorno da magia!

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