sábado, 21 de março de 2009

O retorno da magia - 4

4: A caixa dos conhecimentos ocultos

Do alto do hotel Águia Dourada, o Colecionador observava um clarão distante, quase nos limites da cidade. Ao lado do cemitério dos pioneiros, para ser mais preciso. Algo queimava na noite. Ele sorriu e levantou o copo de Martini seco ao ar, em uma saudação silenciosa. Suas maquinações surtiram efeito. O casarão do Corvo Negro ardia em chamas. Ele tomou a bebida, satisfeito.

Era hora de comemorações. Ele retornou ao quarto e colocou a Cavalgada das Valkírias, de Richard Wagner, para tocar no som estéreo que o hotel lhe oferecia. De repente, ouviu um som vindo da varanda.

Uma fera estava ali, acocorada em cima do muro e preparada para atacar. O Colecionador soltou um sorriso mais largo.

“O que está fazendo aqui?”, rugiu Gatuno. “Demorei horas para encontrá-lo! Mas essa sua loção pós-barba barata te denunciou!”

“João, isso são modos de tratar seu chefe? Vim aqui para ver os frutos do seu trabalho! A casa do meu inimigo arde em chamas e tenho certeza que não teria essa visão magnífica do meu singelo lar...”

“A destruição dele não estava no contrato...”

“Ainda assim...”

“Não devia parecer tão calmo...”

“Por que não?”

“Porque vim aqui para matá-lo!”, respondeu Gatuno e saltou para cima de seu empregador.

O Colecionador não se moveu. As garras da fera miraram o pescoço do inimigo, mas, para a surpresa de Gatuno, atravessaram a carne sem derramar sangue como se cortasse o ar. Gatuno aterrissou atrás do Colecionador. Que não parecia nem um pouco impressionado com a tentativa do homem-tigre de matá-lo.

“Como?”, perguntou Gatuno.

O Colecionador suspirou. “Vejo que escolheu o caminho de Sekhmet depois de tudo...”

O nome da deusa egípcia pegou Gatuno de surpresa. A raiva e ódio se esvaíram para dar lugar à razão. E a razão deu lugar aos pensamentos mais humanos de João dos Santos.

“Você sabe? Como?”

“É óbvio! Bast é muito mais bondosa e compreensiva. E tudo que vejo em você é uma vontade de se impor e destruir possíveis ameaças! O caminho da guerra. De Sekhmet. Não me entenda mal. Acho que essa face lhe cai bem. Se ajusta melhor ao jovem destemido que você mostrou ser.”

Lentamente, João voltou à forma humana. Ele olhava desconfiado para o Colecionador. O amuleto místico brilhava no peito nu.

“Não se preocupe com o amuleto. Eu o dou para você. É o mínimo que posso fazer pelo favor que me prestou essa noite. Além disso, não acho que conseguiria mantê-lo longe de você. Não depois de ter sido escolhido pelos deuses...”

“O que fiz por você custou a vida de um amigo!”

“Quem? O cara de múmia? Achei que ele tinha tentado matá-lo! Pelo menos, foi o que Cedric me disse...”

“Zé Maria não merecia as chamas do inferno!”

O Colecionador deu de ombros. “Ossos do ofício. Onde está o meu livro?”

O ódio ardia no peito de João. Ele sentia vontade de matar o homem diante dele. Mas, ainda assim, era sua vez de sorrir.

“Livro? Que livro?”

“Não se faça de bobo, João. O livro dos Segredos. Você ficou de roubá-lo para mim!”

“Ah, aquele livro! Sim, eu o roubei...”

“E onde está ele?”

“Longe de você! E assim irá permanecer!”

“Ora, você não está pensando em me passar a perna, está?”

“Nem passou pela minha cabeça...”

“Maldito...”

“Opa, sem ofensas, beleza? Ou você quer que eu vire tigre de novo e teste esse seu truque de gasparzinho até encontrar uma fraqueza pela qual possa te rasgar e fazer em pedaços?”

O Colecionador jogou o Martini no chão. O copo se estilhaçou, como uma ameaça não dita. O Colecionador parecia querer bater em João, que sorria.

“Você não faz idéia de com quem está falando, garoto...”

“Não? E o que você vai fazer? Mandar o seu cachorrinho atrás de mim novamente? Pode mandar! Eu não estava preparado para ele antes, mas estou agora com toda a certeza! Eu não escolhi entrar para o seu mundo de maluquices e demônios, mas agora que estou dentro dele, não vai ser um playboy que nem você que vai me fazer ficar de orelha em pé, entendeu?”

O Colecionador recuou. Sua expressão mudou. Parecia cansado.

“Eu preciso do livro, garoto”, disse com voz fraca. “Preciso do livro para desfazer o que você fez...”

“E o que foi que eu fiz além de virar um gato super nutrido?”

“Você liberou um mau antigo sobre esse mundo. Um mau que pode muito bem condenar a todos nós!”

“Está falando de Gatuno?”

“Gatuno é apenas um peão de deuses menores! Não, o roubo do amuleto não significa muita coisa! Mas você não se perguntou o que liberou o poder que agora você carrega?”

“Não sei se compreendo o que está falando...”

“Claro que não, você não tem referência...”, respondeu o Colecionador balançando a cabeça, decepcionado. “No dia em que você me roubou, você acionou as defesas místicas da minha mansão. Nada demais, na verdade. Estava mais para truques de salão do que qualquer outra coisa. E teria continuado assim se você não tivesse agarrado uma caixa antiga para se defender do golpe de um dos meus soldados...”

A mente de João retornou àquele dia fatídico. Ele lembrou da caixa da qual o Colecionador falava. Assim como se lembrava do clarão que escapou dela quando o lacre se quebrou.

“Aquela era a caixa dos conhecimentos ocultos! Uma caixa confeccionada por místicos poderosos em uma época em que o diabo em pessoa caminhava pelo mundo e ameaçava transformar toda Terra no inferno fumegante que tinha deixado para trás! Você o libertou, garoto! E eu preciso do livro para descobrir onde ele está antes que reúna poder suficiente para se transformar em uma ameaça novamente!”

“Bobagem!”, protestou João. “O diabo estava escondido na caixa? Você não tinha uma mentira melhorzinha para tentar me enganar não?”

“Pense, João, pense! Tudo que você presenciou nesses últimos dias. Todos os inimigos que enfrentou. É tão difícil acreditar no que estou falando depois de tudo que viveu na pele?”

João não respondeu de imediato. Ele pensava na caixa. No clarão que deixou as armaduras medievais que o atacavam desnorteada. E em todas as loucuras que ocorreram desde então.

“Não era só o diabo que estava preso dentro daquela caixa, era?”

O Colecionador olhou para João e balançou a cabeça.

“Não. Ela também continha boa parte da magia do mundo antigo. Que trouxe o diabo para a Terra em primeiro lugar. Os místicos de quem te falei o aprisionaram dentro da caixa para dar vida a uma magia mais poderosa e efetiva para a evolução da humanidade. Os homens a chamam de ciência.”

“E agora que a magia está solta na Terra...”

“O caos não demorará a segui-la. O que dará chances para Lúcifer mostrar as cartas que guarda na manga. E isso, garoto, é algo que nenhum de nós quer testemunhar. Eu lhe garanto.”

João não disse nada. Ficou a pensar no dilema que se apresentava. Tinha escondido o livro dos Segredos em um lugar seguro. Mas não podia confiar no Colecionador. Todos seus sentidos lhe diziam isso.

“Se eu lhe der o livro, você poderá consertar esse erro?”

O Colecionador sorriu, como um bom negociador.

“Não. Mas eu conheço as pessoas que podem.”

“E o que você fará depois de colocar o diabo de volta no inferno?”

“Perdão?”

“O que você fará depois? Vai simplesmente guardar o livro na estante? Ou vai aproveitá-lo para que você mesmo domine o resto do mundo?”

“Você não pode estar falando sério...”

O amuleto brilhou intensamente no peito de João. Uma vez mais, ele se transformava no avatar dos deuses e sua forma humana dava lugar para Gatuno.

“O livro está em um lugar seguro e assim vai continuar!”, alertou Gatuno. “Não sei se o que me disse é verdade ou mentira, mas prefiro descobrir sozinho a confiar em um crápula como você! Não cruze mais o meu caminho, Colecionador, ou juro que irá se arrepender!”

Em seguida, saltou do topo do prédio para escuridão. O Colecionador assistiu enquanto o vulto do homem-tigre manobrava agilmente pelos telhados até sumir de vista. Ele segurou a barra de proteção da varanda e a torceu com uma força sobre-humana. Depois, se recompôs. Refez seu humor e sorriu.

Pegou um copo novo e se serviu com uma nova dose de Martini.

“Eu devia saber que não seria tão fácil”, disse para o vazio. “Não importa! A sorte está lançada! Que vença o melhor!”, concluiu fazendo um brinde para a cidade de Ilumina. Uma cidade que, à luz da lua cheia, era lar de anjos e demônios. Naquele momento, mais do que nunca antes.

Fim do episódio

2 comentários:

Pablo Amaral Rebello disse...

Caros leitores, pretendo efetuar algumas mudanças no visual do blog. Espero não demorar muito para retomar as histórias. Peço desculpas pelo inconveniente e conto com a compreensão de vocês. Abs

Anônimo disse...

Acabou a inspiração?