sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Como cães e gatos - 1

Como cães e gatos

1: Procurado

O homem de sobretudo e cabelos negros tragou o cigarro antes de descartá-lo na sarjeta. Os olhos atentos reconheceram o movimento de homens de preto, óculos escuros e fones de ouvido ao redor do casarão. Grandes vans pretas estavam estacionadas na calçada. Ele caminhou sem pressa na direção dos seguranças

Eram 15h de uma segunda-feira ensolarada e o homem de sobretudo tinha um compromisso marcado com o dono do casarão.

Um homem de preto, musculoso e ameaçador, tentou barrar a entrada dele.

“Desculpe”, disse com a mão barrando o caminho do homem de sobretudo. “Mas estamos fechados hoje. Por favor, volte amanhã”.

O homem de sobretudo sorriu.

Três andares acima, o dono do casarão contemplava os estragos feitos à sua coleção enquanto viajava a negócios. Pedaços de armadura jaziam espalhados pelo salão, assim como armas medievais e outras peças de valor inestimável. O amuleto egípcio havia desaparecido. Mas o que mais o preocupava era uma velha caixa de ferro caída a um canto com o lacre estilhaçado.

Então, o som de gritos e luta chegou a seus ouvidos. Ele olhou calmamente no relógio. Seu convidado tinha chegado na hora marcada.

“Senhor!”, chamou um homem de preto ofegante na entrada do salão. “Precisamos tirá-lo daqui agora! Um louco está tentando entrar na casa e nem meus melhores homens conseguem detê-lo!”

“Não seja tolo, Adolfo. Diga a seus homens para afastarem-se. Cedric é meu convidado!”

“Isso não será necessário...”, avisou o homem de sobretudo do corredor. Ele acabava de subir as escadas e ajeitava as roupas enquanto procurava um isqueiro com uma das mãos. Um cigarro pendente na boca. “Já dei conta de todos seus seguranças inúteis...”

O dono do casarão olhou sobre o balcão, de onde vinham grunhidos de dor e blasfêmias. Lá embaixo estavam quase vinte homens caídos e outros tantos se arrastavam com olhos roxos e membros fraturados. O dono do casarão sorriu.

“Algum morto?”

“Não me rebaixe ao nível da escória com a qual está acostumado a lidar”, rosnou o homem de sobretudo acendendo o cigarro. “Devia tê-los avisado sobre o nosso compromisso. Não aprecio violência desnecessária. Por que me chamou?”

“Se bem me lembro, meu caro Cedric, eu e você temos negócios inacabados...”

O homem de sobretudo lançou um olhar penetrante sobre o dono do casarão. Chamas de ódio ardiam dentro dele. Jogou o cigarro que tinha acabado de acender sobre o balcão.

“Eu te devo um favor...”, disse enfim.

“E eu resolvi cobrá-lo!”, respondeu o dono do casarão.

“O que quer de mim, Colecionador?”

“Por favor, Cedric, me chame de Alberto. Não há motivo para formalidades entre nós...”

“O que quer de mim?”, repetiu o homem de sobretudo.

“Ouvi dizer que tem trabalhado como detetive nos últimos tempos”, continuou o dono do casarão, sem se alterar. “Caçando flagrantes de maridos infiéis para velhas ricas da alta sociedade? Não pensei que pudesse se rebaixar tanto...”

“Paga as contas e é um trabalho honesto. Diferente do que gente da sua laia está acostumada a fazer. O que quer de mim?”

O dono do casarão parou sobre uma mesa repleta de bebidas e se serviu de uísque. Encarou o homem de sobretudo. Estava sério agora.

“Alguém foi estúpido o bastante para entrar na minha propriedade e roubar algo de valor para mim”, respondeu secamente. “Quero que você encontre esse bandido e o traga aqui. Com vida. Ele também levou algum dinheiro que quero de volta. Estou disposto a lhe pagar R$ 20 mil pela captura do sujeito!”

“Sujeitos”, corrigiu o homem de sobretudo.

“Perdão?”

“Você fala como se apenas uma pessoa tivesse invadido sua casa”, respondeu o homem de sobretudo com as narinas sobressaltadas, em busca de alguma fragrância perdida. “Mas havia dois deles. Embora o odor de um seja mais difícil de captar do que o do outro...”

“Então irá encontrá-los para mim?”

O homem de sobretudo sorriu e deu as costas para o dono do casarão. Tinha um trabalho a fazer.

Do outro lado da cidade, João dos Santos abria uma lata de cerveja enquanto encarava uma pilha de dinheiro arrumada em cima da mesa do apartamento onde morava. Ali tinham exatos R$ 3,66 milhões de notas sujas de sangue. Era assim que ele encarava a fortuna. Por mais que tentasse, era incapaz de afastar da mente o que fizera ao pobre Zé Maria depois da traição que sofreu.

Ele bebeu a cerveja, que desceu amarga pela garganta. Estava rico e não sentia nenhum prazer nisso. Sua vontade era jogar o dinheiro pela janela e esquecer os horrores que passou para consegui-lo. Chegou a pensar em doar tudo para caridade. Sua tia mantinha um centro comunitário próximo dali e usaria o dinheiro somente para fazer o bem. Só que ela não estava disposta a receber nenhuma fonte de renda obtida por meios escusos, como João descobriu do modo mais difícil. O tapa que levou ao sugerir a idéia para tia ainda ardia na face. Não. Tinha que arranjar outra função para a fortuna maldita.

De repente, o telefone tocou no quarto. João se levantou para atendê-lo, mas parou na metade do caminho. Não podia acreditar no que via. Na cômoda ao lado da cama estava uma peça circular esverdeada com o desenho de um gato impresso na superfície. Era o mesmo amuleto que tinha arremessado um dia antes nas profundezas do Lago Serafim.

“NÃO!”, gritou ele para as paredes. “EU NÃO VOU VIRAR AQUELE BICHO DE NOVO! PODEM ESQUECER! E PODEM ME ESQUECER TAMBÉM!”

João agarrou o medalhão, abriu a janela e o jogou no telhado vizinho. Ele esperava que a peça de pedra se espatifasse em mil pedaços. Mas o amuleto simplesmente quicou duas vezes e parou recostado a uma parede, como se olhasse para João com desdém.

“ME OUVIU, BAST? OUVIU SEKHMET? NÃO TEMO VOCÊS E NÃO ESTOU INTERESSADO NESSE SERVICINHO SEM FUTURO! PROCUREM OUTRO TROUXA PARA FAZER SEU TRABALHO SUJO!”

João fechou a janela e as cortinas. Estava furioso e um pouco assustado. Deusas egípcias o tinham ressuscitado para que ser o avatar delas na Terra. E, claramente, seria mais difícil se livrar da maldição do que previamente imaginara. Olhou o relógio. Eram quase 17h. Boa hora para um drinque no Zona Proibida. Encontrar o pessoal. Clarear as idéias, pensou João e saiu do apartamento, sem olhar para a fortuna abandonada sobre a mesa.

A seguir: Antes das atrações do próximo capítulo, me desculpem pela demora na postagem. Foi uma semana agitada no trabalho. E a próxima promete ser bem movimentada também, visto que vamos entrar em esquema de plantão. Por isso, e por causa dos feriados de fim de ano, entraremos em um breve recesso até o ano que vem. Prometo voltar com força redobrada em janeiro. Por isso, desejo um feliz Natal e um próspero ano novo para todos os leitores do Gatuno! E vamos às atrações do próximo capítulo: O detetive Cedric começa sua busca pelos homens que roubaram o Colecionador! E o que ele irá encontrar deve surpreender quem tem acompanhado a história desde o princípio! Confira na primeira semana de janeiro! Até lá!

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

A marca do Gatuno - 7

7: Acerto de contas

Zé Maria estacionou o carro na frente de um pequeno prédio abandonado, com paredes sujas e pichadas. As mãos do bandido tremiam. Ele olhou para ambos os lados ao descer do veículo. Não havia ninguém por ali. Latidos de cachorro e o som constante de carros em uma via próxima eram tudo que conseguia escutar. Nada de sirenes, nada de gritos, nada de perseguição. Mesmo assim, não conseguia afastar o pressentimento de que alguém observava seus passos. Afinal, tinha matado um homem pela primeira vez a menos de uma hora. Nada mais natural que ficasse meio paranóico.

Pensou em João por um momento, no olhar de surpresa do velho amigo, mas afastou o pensamento o mais rápido que pôde. Primeiro, abriu o cadeado que trancava a porta do velho prédio. Depois, abriu o porta-malas. Ali estava uma sacola esportiva esverdeada com mais dinheiro do que poderia imaginar. Estava pesada. Tão pesada quanto um corpo humano. O preço de uma vida, pensou Zé Maria com amargor.

Então o som baixo, constante e ameaçador fez seu sangue gelar. O som de uma fera escondida na escuridão prestes a atacar.

Zé Maria deixou a sacola cair no chão e se virou, arma em punho. Nada. Nada para nenhum lado que olhasse. Pelo canto do olho, viu um vulto se movimentar em um telhado próximo. Antes que percebesse, duas balas saíram do cano do revólver com um estrondo. Não havia nada lá também.

“Quem diabos está soltando bombinhas na rua a essa hora da noite?”, perguntou um velho sonolento da janela de um dos prédios.

Zé Maria escondeu a arma. Disse para si mesmo que seus nervos tinham lhe pregado uma peça. E ele quase pôs tudo a perder. Fechou o porta-malas, agarrou a sacola e entrou no prédio antes que o velho questionasse o que estava fazendo.

Fechou a porta e subiu as escadas rapidamente. Procurou o interruptor na escuridão e acendeu a luz, que crepitou um minuto antes de iluminar fracamente o ambiente. Não havia muito para se ver. Só coisas velhas e sem valor. Zé Maria ficou em silêncio, a escutar o barulho baixo da lâmpada contra as batidas violentas de seu coração. Ele respirou uma vez profundamente e começou a rir.

“Tente se acalmar, meu velho...”, repetiu para si mesmo. “Você vai conseguir sair dessa sem um arranhão. Pode acreditar...”

Mais calmo, jogou a sacola sobre a mesa e a abriu para contemplar o tesouro com o qual sonhara durante tanto tempo. Antes que tivesse concluído essa simples tarefa, no entanto, a luz se apagou com um estalo.

Zé Maria olhou instintivamente para cima, na escuridão que se instalou. Então ouviu um som metálico vindo de fora do prédio. Como se alguma coisa tivesse arrancado a porta de entrada com força descomunal. Então um rugido inumano soou. Como o som de um leão em busca de sua presa.

Zé Maria agarrou a arma e mirou para entrada. Podia ouvir passos pesados na escada. Tão altos quanto as batidas do próprio coração, que ameaçava saltar do peito com a antecipação do confronto. Gotas de suor corriam sobre o rosto. Respirava com dificuldade.

Então os passos pararam. A poucos metros da porta. Zé Maria engatilhou a arma, preparado para acertar o que quer que entrasse no quarto. Os segundos se arrastavam sem que nada acontecesse. Por um momento, o bandido questionou a própria sanidade. Teria imaginado todos aqueles sons?

A porta se partiu em pedaços diante de um impacto destruidor.

“AAAHHHHHH”, gritou Zé Maria desesperado.

Seus dedos tomaram vida própria e puxaram o gatilho várias vezes. O clarão do revólver iluminou momentaneamente o pequeno quarto. O que Zé Maria viu naquele breve instante de clareza serviu apenas para estilhaçar o que restava da sanidade do bandido. Um tigre, pensou frebrilmente. Vou ser morto por um tigre!

Zé Maria apertou o gatilho até as balas acabarem. Não sabia se tinha acertado o animal ou não. Se jogou atrás de um sofá na esperança de escapar das garras da fera. Respirava com dificuldade. Todos seus sentidos pareciam despertos, especialmente a audição. Tentava ouvir qualquer movimento do inimigo que espreitava a escuridão. Mas só escutava os sons da noite do lado de fora do prédio e um mosquito a zanzar sem destino. Decidiu recarregar a arma.

Colocou a mão nos bolsos e amaldiçoou o som metálico de balas batendo levemente uma contra a outra. Então escutou uma risadinha que o deixou ainda mais assustado. Nenhum animal seria capaz de produzir um som como aquele.

“Q-qu... Quem está aí?”, exigiu.

Sem resposta. Zé Maria colocou a primeira bala no tambor do revólver.

“Olha, eu estou armado. Mas não tem motivo para a gente se matar por conta de nada. Tem uma fortuna em cima da mesa. A gente pode dividir e cada um seguir o seu caminho, o que acha?”

Silêncio.

“É tarde demais para isso, traidor!”, rosnou uma voz poderosa e ao mesmo tempo familiar.
Estaria sua mente lhe pregando truques?

“J-João?”, perguntou Zé Maria. A segunda bala em posição. “V-você tá vivo? C-co... como?”
Sem resposta.

Zé Maria decidiu terminar de uma vez o que estava fazendo. Não podia ser João. João estava morto. Ele tinha garantido isso. Mas e o tigre? Teria acertado o animal? Não podia mais escutá-lo, então era possível que ao menos uma ameaça tivesse sido eliminada. Tudo que precisava fazer era matar o sujeito que estava escondido em algum lugar próximo.

A arma estava recarregada. Zé Maria fechou o tambor e a engatilhou. Se sentia um pouco mais seguro. Ao se mexer, bateu em algo que rolou na escuridão. Com a mão livre, procurou pelo objeto e logo percebeu o que era. Uma lanterna. Talvez nem tudo estivesse perdido.

“Última chance, cara! A gente divide a grana e vaza! É pegar ou largar!”

“Sem acordos!”, respondeu a mesma voz no canto esquerdo do quarto.

Zé Maria se levantou e atirou duas vezes na direção do som.

A voz, apesar de rouca e mais grave, era de João. Não tinha dúvidas. No clarão da arma, pensou ter visto uma forma humana se mover rapidamente. Mas não podia ter certeza. O barulho dos tiros em um lugar tão fechado reverberava ameaçava estourar seus tímpanos. Teria acertado o inimigo? Após ficar alguns segundos parado, decidiu acender a lanterna.

“João?”, perguntou novamente.

Sem resposta. O facho de luz mostrou que os dois tiros disparados tinham acertado a parede. Não havia ninguém ali. Mas percebeu um vulto do lado direito e se virou naquela direção. Então a arma e a lanterna foram arrancadas de sua mão por um golpe poderoso.

Zé Maria gritou de dor. Suas mãos tinham sido cortadas por algo afiado.

A lanterna caiu no chão e virou várias vezes, parando com o facho apontado para Zé Maria e seu atacante. Só então o bandido pôde ver o terror que o ameaçava. Ele sentiu tudo desabar dentro de sua mente. Não conseguiu nem gritar.

“Não me chame de João, seu verme!”, rosnou a enorme criatura agarrando-o pela gola da camisa. “Para escória como você, eu sou e sempre serei o Gatuno! E vou garantir que você não se esqueça disso!”

A criatura com rosto de tigre e poderosos músculos levantou a mão livre acima da própria cabeça. Garras manchadas de sangue brilharam na luz da lanterna. As pupilas de Zé Maria se dilataram.

Do lado de fora, gritos aterradores preencheram a madrugada por instantes que pareceram intermináveis. Então o silêncio reinou sobre a noite. Até que uma criatura meio humana meio felina saiu do prédio abandonado com uma sacola a tira-colo. A monstruosidade colocou a mão no pescoço e tirou o que parecia ser um colar. Imediatamente, suas formas mudaram e, onde antes havia um monstro, agora caminhava um homem. Um homem que carregava o peso de uma vida no ombro esquerdo.

Epílogo

Dia seguinte.

João observava o nascer do sol sobre a ponte da Alvorada. Os raios refletiam sobre a superfície das águas do Lago Serafim afastando os horrores e loucuras de uma noite longa demais. Ele poderia até acreditar que nada do que passou fosse real. Apenas um pesadelo mais claro que o comum. Não fosse pelo objeto que carregava nas mãos e a sacola no porta-malas do monza preto que dirigia.

Deusas egípcias me deram uma segunda chance, pensou com amargor. E usei isso para manchar minhas mãos de sangue. O que fiz com Zé Maria... não deve se repetir. Nunca mais. Lamento, mas não serei um avatar dos deuses na Terra.

A mão de João se fechou sobre o amuleto que carregava. Sem pensar duas vezes, usou toda a força que tinha para arremessar o objeto o mais longe possível. A peça voou rumo ao sol antes de descer em um longo arco até atingir as águas escuras do lago.

“Pronto”, disse João para ninguém em especial. “Que essa maldição não recaia sobre os ombros de nenhum outro pobre coitado...”

João entrou no carro e ligou o som. Uma música triste e melancólica saiu das caixas de som. Ele deu partida e acelerou, querendo deixar para trás todas as memórias da noite anterior.
Enquanto isso, o amuleto chegava ao fundo do lago, onde parou. A peça brilhou intensamente por um segundo. Então as águas se revolveram, agitando as algas e, quando pararam, o amuleto não estava mais lá.

Fim do episódio

E assim chegamos à conclusão da primeira aventura do Gatuno! Espero que todos os leitores que acompanharam a história até aqui tenham se entretido com leitura tanto quanto eu me diverti na construção da história! Aviso também que a diversão não acaba por aqui! Na semana que vem, inicio uma nova história intitulada “Como cães e gatos”, que dão continuidade direta aos eventos relatados na Marca do Gatuno! E não vou parar por aí! Tenho material preparado para abastecer esse blog durante um bom tempo! Então, obrigado a todos por acompanharem o blog, e nos vemos novamente em uma semana! Ciao!

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

A marca do Gatuno - 6

6: Gatuno vive!

O vento soprou sobre o corpo imóvel de João dos Santos. Apenas a grama e as folhas de árvores se moviam no jardim do casarão na rua Barões do Cerrado. A noite era dominada pelo silêncio quando, sem nenhum aviso, o morto gritou.

João levantou-se como se tivesse acabado de levar um choque. Seu peito ardia e ele assistiu atônito enquanto três projéteis de chumbos eram expelidos de seu corpo e os buracos se fechavam como num passe de mágica. Levou aproximadamente um minuto para que ele se convencesse de que tinha acabado de ressuscitar.

“Estou vivo”, sussurrou. “ESTOU VIVO!!!”, gritou. “Cara, essa vai ficar para a história. Pensei que tinha ganhado uma passagem só de ida para a terra dos pés juntos. Mas... o que isso significa?”

João lembrou-se do encontro com as divindades felinas em algum plano de consciência superior de existência. Se estava em pé e respirando, tudo aquilo ocorreu de verdade. O que significava que ele tinha um débito a pagar. Algo como se transformar num avatar dos deuses na Terra...

Ele olhou para o amuleto que ainda carregava na mão. A peça brilhou intensamente. João podia sentir o poder fervilhando na jóia. Os olhos do gato encravados na pedra esverdeada pareciam encará-lo. De repente, sentiu uma vontade irrefreável de vestir a peça.

Lentamente, prendeu o feixe de bronze do colar em que o amuleto ficava pendente e o colocou no pescoço. O brilho da jóia esvaneceu aos poucos. Ele a sentia pulsar próxima do coração. Devagar. E, então, sem pulsação alguma.

“É só isso?”, perguntou.

E, como se as palavras invocassem os poderes do além, os olhos no amuleto lançaram raios cegantes na escuridão. João gritou de desespero e medo. Uma energia entrou violentamente através do seu peito, atravessou seu coração e se distribuiu por todo o corpo como eletricidade. Ele caiu de joelhos no chão. Podia sentir a energia se mover dentro de si. E começar a transformá-lo em algo mais do que humano.

As mãos doíam. Como se os ossos nas pontas dos dedos quisessem saltar para fora. Ele olhou para elas e percebeu que também começavam a mudar de formato. E, como pode notar, as mudanças não pararam por aí. Pêlos alaranjados começaram a sair de todos os poros do corpo. Pouco depois, apareceram garras. Ele sentiu o rosto se alargar. As orelhas se moverem para o topo da cabeça e ficarem pontudas. Os dentes cresceram pontiagudos na boca. Só então se deu conta do que estava acontecendo.

Estava se transformando em um deles. Em um Deus-gato. E a dor era incomensurável.

“NÃÃÃÃÃÃOOOOOOOO!!!”, bradou aos quatros ventos.

Tarde demais. A transformação estava completa. Seu corpo não doía mais. Uma palavra flutuava em sua mente. Uma palavra dita por Bast antes de mandá-lo de volta para o mundo dos vivos.

Gatuno.

“DEUSA DOS INFERNOS!!!”, berrou. “Ela não falou sobre nada disso...”

João analisou o próprio corpo alterado por breves momentos. Então notou que o amuleto, preso ao pescoço, havia sumido. Mas ainda podia sentir seu peso. Tentou tocá-lo. A peça continuava ali. Embora presa à pele dele de alguma maneira. João se perguntou o que aconteceria se retirasse a peça, se isso o faria humano novamente. Mas não teve tempo de testar a teoria.

O barulho de algo se movendo chamou sua atenção. Só então percebeu as mudanças em sua visão noturna. O mundo parecia mais vivo. Mais cheio de luz. Ele podia enxergar sombras na escuridão como se estivesse debaixo do sol do meio-dia. Mas a primeira coisa que viu com os novos olhos que as deusas lhe deram não o deixou saborear os novos sentidos.

Uma poeira branca escapava por baixo das portas do casarão e dançava no ar noturno em espirais, que não demoraram a tomar uma forma concreta. João deu um passo para trás. A estátua do sátiro que vira anteriormente no interior da mansão tomava vida diante dos seus olhos. Demorou poucos segundo para que a estátua retomasse sua solidez pétria.

Só que, em vez de ficar parada, a estátua se moveu e encarou a criatura semi-humana que a encarava estupidamente no jardim abaixo. O sátiro já não sorria mais. Sua expressão dura de mármore mostrava apenas raiva e descontentamento com um inseto que invadiu o lar de seu mestre. E mãos gigantescas se aproximavam para esmagá-lo.

O mais puro instinto fez com que João saltasse segundos antes das mãos de pedra baterem sobre o local onde se encontrava. Ele parou de pé, em cima de uma cerca de pedra, e encarou o novo inimigo.

“Isso tudo é loucura...”, comentou para ninguém em especial.

O sátiro atacou novamente. João se desviou do golpe e pousou no antebraço da criatura. Como um relâmpago, subiu até o ombro e saltou na direção da enorme cabeça. Ele gritou e desferiu um golpe no olho da estátua. As garras arrancaram uma camada de mármore e o sátiro se afastou, como se estivesse realmente ferido. João se agarrou na lateral da casa e subiu no telhado.

Não adiantava tentar argumentar com a criatura. Ela não tinha vida. Tinha certeza disso. Seus instintos lhe diziam. Mas também não via meios de derrotar o enorme colosso. A situação não era das melhores.

O sátiro se virou e viu o pequeno homem-tigre no teto da casa. Ele grunhiu os dentes e preparou-se para uma nova investida. Mas, nesse momento, o som de sirenes distantes ecoou pelo ar. Alguém provavelmente chamou a polícia por conta do barulho dos tiros disparados por Zé Maria no que parecia ser outra vida. O sátiro parou. Olhou para direção do som. Então se virou para João, com um olhar de mais puro ódio, e começou a se desfazer novamente. Logo, uma espiral de poeira voltava para dentro da casa pelos vãos entre as portas e janelas. João estava sozinho novamente.

Ele ainda tentava digerir as impressões do breve confronto. Mas não tinha tempo. A polícia se aproximava e isso era suficiente para que também tratasse de sumir dali. Usando os músculos de sua nova forma, correu pelo telhado e saltou na escuridão. Alcançou outro prédio e continuou sua corrida desenfreada até uma posição que considerou relativamente segura. Só então parou.

Não estava cansado. Longe disso. Sentia como se pudesse fazer aquilo a noite inteira. Nunca se sentiu tão vivo. E nunca sentiu tanta raiva antes. Pois os eventos que o levaram a se transformar naquela monstruosidade ainda borbulhavam como um vulcão em sua mente.

Zé Maria, pensou com uma raiva mais afiada que uma faca. Você deve pagar pelo que me fez!

“Não faria isso se fosse você...”, disse uma voz familiar.

João se virou.

“Você?!”

Bubastis estava sentado na beirada do prédio e encarava a criatura metade humana metade felina com descaso.

“As malditas que fizeram isso comigo te mandaram para me espionar agora? É isso?”

“Se entregar ao ódio e à vingança não é o caminho de Bast”, se limitou a responder o gato.

“O que quer dizer?”

“Você é um cara esperto. Pode descobrir sozinho. Apenas lembre-se do que Bast lhe disse...”

O gato se levantou e preparava-se para partir. João saltou na frente do animal.

“Não pense que irá se livrar de mim com frases enigmáticas bichano!”, avisou João agarrando Bubastis pelo pêlo. “Quero mais informações sobre o que suas amigas fizeram comigo! E quero agora! Não pretendo passar o restante da vida como um personagem de estampas de cereais!”

“Nem precisa. Você pode voltar a ser humano quando quiser...”

“Mas como eu faço isso?”

Bubastis sorriu e piscou. Então escorregou das mãos de João, como se tivesse virado água, e desapareceu na escuridão. João procurou em volta por qualquer sinal do gato, mas não havia nada à vista. Estava sozinho novamente.

E a menos de 500 metros do local onde tinha combinado de fazer a divisão do dinheiro roubado com Zé Maria...

A seguir: João voltou dos mortos como uma criatura saída de sonhos inimagináveis, mas o homem que destruiu sua vida ainda encontra-se livre. O que acontecerá quando Gatuno encontrar seu assassino? Descubra em uma semana na conclusão de A marca do Gatuno!